quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Dos transbordamentos da dor e da gratidão

"Vou te contar um segredo:
às vezes corro pra vida.
Em outras, morro de medo."

Amiga de inexplicáveis sincronicidades

Não há impropriedade em querer mais, preciso te dizer. É disso, aliás, que se alimenta quem não se contenta com o fato de que “lá em casa todos comem”, como diria o teu amigo, numa resposta a perguntas socialmente convencionais, o que nem de longe é o caso aqui. Entendo, no mais fundo de mim, essa insatisfação de que falas em tua carta. Também eu brigo todos os dias com a leve sugestão de uma vida ordinária, tenho essa necessidade de perceber o extremo que pode haver, de não conviver bem com o mediano-medíocre em mim e no outro. Deus!! E são tantas as vezes em que me descubro sendo nada além desta miséria! Aliás, lembro sempre de alguém que disse uma vez: “gosto do quente ou do frio. O morno, Cecilia, o morno a gente vomita”. Fico infeliz com a vida comum, Eliza, muito! Acho a grande desgraça, a tragédia, o tédio infindável essa coisa miúda dos dias quando se repetem. Da gente, quando se repete. Odeio-me comum, rastejante na uniformidade. Sim, eu sei, minha amiga, esse é um discurso tão adolescente, não é mesmo? Enfim, os discursos, como as criaturas. Como acabo sempre vivendo por música, ocorre de lembrar a Ana Carolina cantando “não vou dizer que tudo é banalidade, ainda há surpresas, mas eu sempre quero mais. É mesmo exagero ou vaidade, eu não te dou sossego, eu não me deixo em paz”. Eu também não me deixo por menos.

Eliza, embora só tenha mensurado por e-mail, conto aqui: meu W., enfim, foi embora. Deixou uma saudade espelhada nos olhos tristes do cão a olhar demoradamente a porta. E deixou o quarto, Eliza, a dor já tão cantada do quarto vazio do filho, da cama que estará arrumada demasiados dias, depois, quando a manhã a iluminar. A inutilidade das primeiras flores do ipê branco plantado em frente à sua janela e que logo apontará seus brotos não comemorados. A dor de um filho, quando parte em direção à vida, é preciso ser disfarçada, mascarada em conveniências, justificada em poemas de um antigo Gibran a lembrar que nossos filhos não são nossos filhos, mas filhos e filhas da ânsia da vida por si mesma... Palavras! Afinal, não é para que conquistem seu próprio espaço que os concebemos? Não fomos nós que alardeamos o objetivo maior de nos tornarmos um dia prescindíveis? Mas a dor das malas prontas esperando para serem colocadas no carro... Ah, Eliza, a dor de um filho indo abraçar o mundo é como o despego de um barco do cais sem que tenha havido antes uma tempestade, são os porões da gente esventrados, as vísceras expostas na plena luz do dia, é a gente no avesso da vida entregando a ela os nossos melhores presentes. Tudo isso tendo que se mostrar como corriqueiro, cotidiano, desejado até. E o melhor, ou o pior, é que deve ser festejado como se festejam as núpcias, abundantemente, entre brindes e música alta. Uma espécie de luto camuflado de alegria, entretecidos num mesmo momento. O paradoxo da dor sendo celebrada, querida, misturada com boas quantias de orgulho, esperança e certeza sobre o caráter que – inato – apenas ajudamos a lapidar. Mas a grandeza da delicadeza de quem nos ama, Eliza, é o que garante que possamos sentir isso tudo e até ... agradecer!

Pára! Intervala o tempo! Dá o distanciamento de quase um mês acontecido desde que escrevi este primeiro trecho da resposta à tua carta. Não consegui terminar, então, o que dizia, pela dor ou pela evitação dela.

Como as coisas vêm em séries, não consegui processar de um tudo e – por necessidade profissional ou negação da dor - atropelei-me, na agenda, por algumas semanas. Um congresso, suas reuniões e aulas a preparar, a angústia que sempre antecede estes momentos. Mas eis-me aqui, novamente. Parece tempo demais, mas há apenas duas semanas que te enviei aquele torpedo do Galeão-Jobim, em trânsito. Ainda em Belém recebi teu e-mail, que não tive como responder: perguntavas se eu estava bem e eu sequer me olhava, para poder saber. Assim, não respondia. Ontem, quando me enviaste a mensagem de preocupação solidária no celular e conseguimos falar um pouco, estava dirigindo na direção de W. Muitas horas de conversa depois e uma mãe com a saudade apaziguada deste lado, agora posso escrever-te. Tem um mundo de coisas ocorridas e ocorrendo para contar-te.

Começo pelas mais antigas: lembra do livro que antecipei na última carta (A Fera na Selva, do Henry James)? É um livro que fala de esperarmos durante uma vida inteira por uma fera que – escondida na selva – poderá dar o bote a qualquer momento, por um grande acontecimento que venha a justificar o estado de espera, que venha a nos erguer do comum. Pensei nele durante semanas. Um livro instigante, profundo em conteúdo e bonito na forma (na edição da Cosac Naif, as cores das páginas e dos tipos impressos acompanham a densidade da trama).

O doutorado? É outra longa (e tristemente chata) história. Conto da outra vez, senão isso se arrasta.

Quero te saber. Eu, que dessa vez só fiz transbordamentos, quero te saber. Conta? Mantem-se a idéia da vinda ao sul em outubro?

Beijo,

CeciLia

(Epígrafe: Ângela Toledo - Imagem: Hugo Amador)