segunda-feira, 12 de outubro de 2009

sobre um insólito lugar - por Eliza

Queridíssima!

Em quantas vezes a palavra é soberana? Em quantas outras é somente cobertura em vão? Em quais mais é nulidade? É equívoco, é ruído. Quis te oferecer somente o silêncio do abraço – porto no corpo. Entretanto, a distância, sempre a distância a causar impedimentos. Mas, eis que você mesma me conta da travessia e da estrada, essa possibilidade de encontro a saciar saudades... Então me rendo e me devolvo ao tatibitati que nos aproxima pela aceitação da distância.

Ouvindo você falar dos teus meninos, em especial do teu W., que ganhando o mundo, desatraca do teu cais; não pude deixar de lembrar dos meus próprios pensamentos ao gerar e parir meninas: ...que ocupassem, depois de mim, esse insólito lugar da mulher. Minhas recordações ganham precisão na responsabilidade e no prazer que eu mesma descobria enquanto embalava a mais velha sobre a barriga enluarada em que a outra já se anunciava... O que pode ser mais poderoso, mais definitivo, mais divino do que a simbiose perfeita entre o corpo feminino e uma outra vida que ele carrega? Nada. Definitivamente esta é a expressão maior do tudo! Uma viagem de sincronia: nove meses, até o surto da separação. Esta traição corporal, minha querida, esta primeira, era o prenúncio dos ciclos que estariam por vir, onde a cada etapa, seríamos convocadas à dor de deixar viver... Somos, portanto, e necessariamente, um corpo em traição: uma promessa de permanência e proteção, sempre obrigadas ao exercício da reparação.

Nunca chego a uma conclusão: somos nós, nessa condição que vem do ventre, a primeira e a eterna traição? Ou antes, ao contrário, seremos desde o nascimento das crias, condenadas ao porto que assiste às partidas e acolhe os retornos, sempre de passagem, sempre de visita? Ou ainda, somos ambas – colo que acolhe, mas não basta; píer fincado frente ao infinito, ao horizonte.

Sabe, Cecilia, falta-me estrada, falta-me sabedoria talvez. Quem sabe um dia, eu possa repetir as palavras de Cora Coralina para dizer da semente e do fruto ...Crescestes numa escola de luta e de trabalho. Depois, cada qual foi ao seu melhor destino. E a velha mãe sozinha devia ainda um exemplo de trabalho e de coragem. Minha última dívida de gratidão aos filhos... (poema na íntegra) Quem sabe?

Até lá, sigo trôpega... traidora e traída, e ainda assim, maravilhada por esse destino que desde o primeiro momento foi meu reator de força, meu sentido e minha redenção. Assim me fiz mulher e não desejo a elas menos que isso.

Deixo-te agora, com meu abraço mais apertado,
Meu afeto e minha admiração,
Eliza

Nenhum comentário: