sexta-feira, 27 de novembro de 2009

da dureza dos ossos e das rendições à vida

“Quero ver você sair ao mar
Amar o precipício, solto numa boa
E deixar atrás o velho cais
e na distância ver a olho nu:
Com asa fechada ninguém voa...”


Eliza, minha querida Eliza

Sei que o tempo contado voou, como era previsível e – por ser sempre assim - nem deveria ser descrito aqui. Mas escrevo. Ontem era outubro e agora já se passou mais de um mês, desde que me escreveste. Desculpa-me e é minha testemunha, nessa ausência, um Cronos-deus exigente, que tem por hábito engolir seus filhos e assim me tem consumido. O ruim disso tudo é que nem dessa forma conseguimos ser originais, absolutamente todos sofremos desse devoramento. Algumas translações, umas primaveras mal-iniciadas e eis-me, entre mudanças de endereço e outras inquietações, que embora não sejam suficientes para não sentir tua falta, para não querer saber das viagens, para não perguntar daquelas e daqueles a quem amas, anestesiam algumas percepções, e isso também é verdade, mas não todas. Ando precisando é dos outros sentidos. De Kairós, palavra de impensável sabedoria, o tempo certo das coisas acontecerem. Ah, querida, não é de Saturno e seus grilhões de que sinto a falta necessária a parar e escrever-te e falar da amizade que não se consome e da preocupação e da falta deste vínculo que precisa substrato. Sinto falta é de um abandonar-se às possibilidades, ignorar os minutos contados entre um e outro compromisso num eterno apagar de fogueiras. Sinto falta é do desterritório que há somente nos sonhos e em alguns percursos menos explicáveis aqui.

É sobre isso que quero escrever-te. Outro dia indagaste sobre a necessidade de viajar que me acompanha desde o berço, ao menos assim creio. (Naquele remoto campo de pouso, minhas asas tinham tonalidade metálica e hélices que precisavam ser movidas à mão). No meio dessas agendas desenfreadas onde não permitimos sequer uma brecha ao imprevisível, onde o destino – se ocorrer dele existir – não tem a menor chance de manifestar-se, no meio de uma pauta maluca a que nos submetemos por incompetência e necessidade, fico com vontade de ser fruta na ribanceira.

- Como assim?, - sou capaz de imaginar teu olhar interrogativo, a sobrancelha direita levemente elevada.

Assim: ando preferindo ser fruta que – no beiral da ribanceira – descola-se do galho e se lança na parede úmida que leva ao vale, curiosidade e vertigem. Ando precisando ser poeira de beira de estrada, pássaro resgatado ao ninho, tempestade chegando no horizonte, bicicletas sem freios, pés inchados de terra e pedra e cansaço sem outra preocupação senão a de andar. Ando precisando de chegada imprevista em lugar incerto, de largar-se ao acaso, de permitir o imponderável. Vida previsível, autor incompetente, poderás e poderão pensar, se tiverem se dado ao trabalho de chegar até aqui, nessa missiva.

*******

Pára. Novo capítulo. Esta parte inicial – com epígrafe e tudo que prefiro manter - estava na minha pasta de rascunhos há uma semana, esperando pelo desfecho, esperando que eu conseguisse terminar para ti uma carta que não fosse auto-referencial-óbvia-redundante. Daí aconteceu. Nesse contexto citado de passagem no trecho anterior, a venda da minha casa e um prazo de sessenta dias para uma alteração mais ou menos grande no apartamento novo me deixavam impaciente com as demoras na definição do projeto, no início da obra, na condução da documentação, coisas que não dependiam de mim. Andava naquele momento em que tudo se arrastava e eu começava a achar o mundo inteiro de uma lerdeza exasperante.

Daí entra a vida e suas rasteiras. Daí surge no caminho da gente um piso recém-lavado e, sem avisos o piso e a vida, a gente desliza dolorosamente para dentro de um gesso que imobiliza a perna, mas não o pensamento. Daí precisa – já que não soube por meios pacíficos – literalmente permanecer estendida no chão, dobrada, rendida, à espera do socorro, que façam por nós as coisas mais óbvias. Daí é necessário pensar cada dimensão de novo. Pensar no osso partido ao meio e nos compromissos abortados. Pensar em que não adianta nada mesmo essa correria louca, esse atropelar-se. Precisa-se da bruteza de um osso partido ao meio para isso, Eliza. Péssima, essa falta de sutileza que necessita da intervenção agressiva e dura da vida! Quando isso acontece, calcula-se coisas que normalmente não passam pela consciência, cada distância a percorrer entre um cômodo e outro da casa, a força que os braços têm para as muletas, a regularidade do piso, pensa-se em como transportar coisas banais como um celular sem poder usar as mãos. É preciso que alguém lave os nossos cabelos e prepare o mate. É preciso que dirijam o nosso carro e guardem a nossa vida.

Mas, para além disso, Eliza, é preciso dar graças por descobrir carinho e disponibilidade imensos em todos por aqui. Tenho agradecido inúmeras vezes a um Deus que nem entendo direito, mas que sei que existe sob alguma forma, por isso não ter acontecido com um paciente ou com um dos meus filhos ou ainda com qualquer dos que amo. A minha ansiedade doeria mais, muito mais, do que qualquer dor física que cessa com um analgésico mais potente. É preciso agradecer pela existência de algumas pessoas em especial, nesse momento. Além de todos, S. e V. têm sido incansáveis.

Agora releio o trecho inicial. Nem comento o último parágrafo, não consigo pensar na força da coisa que se pede e é atendida. Ou, como diria o poeta, "É impressionante a força que as coisas parecem ter, quando precisam acontecer". De quem é isso? Não lembro agora. Preparo-me para a cirurgia, às dezesseis. Sei que daqui a quatro semanas estarei pronta em ossos. Depois vem a hora de trabalhar os músculos, despertar os movimentos. Espero que 2010 me encontre menos rígida. Assim, e só desse jeito, terá valido a dor e a impotência. Sigo relendo e me dou conta de coisa pior, Eliza. Continua auto-centrada esta carta e me consolo buscando um trecho do excelente romance de Philippe Besson (Na ausência dos homens, Rocco), onde o protagonista se pergunta: “Contou-se algum dia outra coisa que não fosse a própria história?”

Um beijo, querida. Me conta, tu também, as tuas histórias?

Que Deus as acompanhe,

CeciLia
(Imagem: CeciLia Cassal, Caraíva, BA - Epígrafe: Lô Borges)

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

sobre um insólito lugar - por Eliza

Queridíssima!

Em quantas vezes a palavra é soberana? Em quantas outras é somente cobertura em vão? Em quais mais é nulidade? É equívoco, é ruído. Quis te oferecer somente o silêncio do abraço – porto no corpo. Entretanto, a distância, sempre a distância a causar impedimentos. Mas, eis que você mesma me conta da travessia e da estrada, essa possibilidade de encontro a saciar saudades... Então me rendo e me devolvo ao tatibitati que nos aproxima pela aceitação da distância.

Ouvindo você falar dos teus meninos, em especial do teu W., que ganhando o mundo, desatraca do teu cais; não pude deixar de lembrar dos meus próprios pensamentos ao gerar e parir meninas: ...que ocupassem, depois de mim, esse insólito lugar da mulher. Minhas recordações ganham precisão na responsabilidade e no prazer que eu mesma descobria enquanto embalava a mais velha sobre a barriga enluarada em que a outra já se anunciava... O que pode ser mais poderoso, mais definitivo, mais divino do que a simbiose perfeita entre o corpo feminino e uma outra vida que ele carrega? Nada. Definitivamente esta é a expressão maior do tudo! Uma viagem de sincronia: nove meses, até o surto da separação. Esta traição corporal, minha querida, esta primeira, era o prenúncio dos ciclos que estariam por vir, onde a cada etapa, seríamos convocadas à dor de deixar viver... Somos, portanto, e necessariamente, um corpo em traição: uma promessa de permanência e proteção, sempre obrigadas ao exercício da reparação.

Nunca chego a uma conclusão: somos nós, nessa condição que vem do ventre, a primeira e a eterna traição? Ou antes, ao contrário, seremos desde o nascimento das crias, condenadas ao porto que assiste às partidas e acolhe os retornos, sempre de passagem, sempre de visita? Ou ainda, somos ambas – colo que acolhe, mas não basta; píer fincado frente ao infinito, ao horizonte.

Sabe, Cecilia, falta-me estrada, falta-me sabedoria talvez. Quem sabe um dia, eu possa repetir as palavras de Cora Coralina para dizer da semente e do fruto ...Crescestes numa escola de luta e de trabalho. Depois, cada qual foi ao seu melhor destino. E a velha mãe sozinha devia ainda um exemplo de trabalho e de coragem. Minha última dívida de gratidão aos filhos... (poema na íntegra) Quem sabe?

Até lá, sigo trôpega... traidora e traída, e ainda assim, maravilhada por esse destino que desde o primeiro momento foi meu reator de força, meu sentido e minha redenção. Assim me fiz mulher e não desejo a elas menos que isso.

Deixo-te agora, com meu abraço mais apertado,
Meu afeto e minha admiração,
Eliza

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Dos transbordamentos da dor e da gratidão

"Vou te contar um segredo:
às vezes corro pra vida.
Em outras, morro de medo."

Amiga de inexplicáveis sincronicidades

Não há impropriedade em querer mais, preciso te dizer. É disso, aliás, que se alimenta quem não se contenta com o fato de que “lá em casa todos comem”, como diria o teu amigo, numa resposta a perguntas socialmente convencionais, o que nem de longe é o caso aqui. Entendo, no mais fundo de mim, essa insatisfação de que falas em tua carta. Também eu brigo todos os dias com a leve sugestão de uma vida ordinária, tenho essa necessidade de perceber o extremo que pode haver, de não conviver bem com o mediano-medíocre em mim e no outro. Deus!! E são tantas as vezes em que me descubro sendo nada além desta miséria! Aliás, lembro sempre de alguém que disse uma vez: “gosto do quente ou do frio. O morno, Cecilia, o morno a gente vomita”. Fico infeliz com a vida comum, Eliza, muito! Acho a grande desgraça, a tragédia, o tédio infindável essa coisa miúda dos dias quando se repetem. Da gente, quando se repete. Odeio-me comum, rastejante na uniformidade. Sim, eu sei, minha amiga, esse é um discurso tão adolescente, não é mesmo? Enfim, os discursos, como as criaturas. Como acabo sempre vivendo por música, ocorre de lembrar a Ana Carolina cantando “não vou dizer que tudo é banalidade, ainda há surpresas, mas eu sempre quero mais. É mesmo exagero ou vaidade, eu não te dou sossego, eu não me deixo em paz”. Eu também não me deixo por menos.

Eliza, embora só tenha mensurado por e-mail, conto aqui: meu W., enfim, foi embora. Deixou uma saudade espelhada nos olhos tristes do cão a olhar demoradamente a porta. E deixou o quarto, Eliza, a dor já tão cantada do quarto vazio do filho, da cama que estará arrumada demasiados dias, depois, quando a manhã a iluminar. A inutilidade das primeiras flores do ipê branco plantado em frente à sua janela e que logo apontará seus brotos não comemorados. A dor de um filho, quando parte em direção à vida, é preciso ser disfarçada, mascarada em conveniências, justificada em poemas de um antigo Gibran a lembrar que nossos filhos não são nossos filhos, mas filhos e filhas da ânsia da vida por si mesma... Palavras! Afinal, não é para que conquistem seu próprio espaço que os concebemos? Não fomos nós que alardeamos o objetivo maior de nos tornarmos um dia prescindíveis? Mas a dor das malas prontas esperando para serem colocadas no carro... Ah, Eliza, a dor de um filho indo abraçar o mundo é como o despego de um barco do cais sem que tenha havido antes uma tempestade, são os porões da gente esventrados, as vísceras expostas na plena luz do dia, é a gente no avesso da vida entregando a ela os nossos melhores presentes. Tudo isso tendo que se mostrar como corriqueiro, cotidiano, desejado até. E o melhor, ou o pior, é que deve ser festejado como se festejam as núpcias, abundantemente, entre brindes e música alta. Uma espécie de luto camuflado de alegria, entretecidos num mesmo momento. O paradoxo da dor sendo celebrada, querida, misturada com boas quantias de orgulho, esperança e certeza sobre o caráter que – inato – apenas ajudamos a lapidar. Mas a grandeza da delicadeza de quem nos ama, Eliza, é o que garante que possamos sentir isso tudo e até ... agradecer!

Pára! Intervala o tempo! Dá o distanciamento de quase um mês acontecido desde que escrevi este primeiro trecho da resposta à tua carta. Não consegui terminar, então, o que dizia, pela dor ou pela evitação dela.

Como as coisas vêm em séries, não consegui processar de um tudo e – por necessidade profissional ou negação da dor - atropelei-me, na agenda, por algumas semanas. Um congresso, suas reuniões e aulas a preparar, a angústia que sempre antecede estes momentos. Mas eis-me aqui, novamente. Parece tempo demais, mas há apenas duas semanas que te enviei aquele torpedo do Galeão-Jobim, em trânsito. Ainda em Belém recebi teu e-mail, que não tive como responder: perguntavas se eu estava bem e eu sequer me olhava, para poder saber. Assim, não respondia. Ontem, quando me enviaste a mensagem de preocupação solidária no celular e conseguimos falar um pouco, estava dirigindo na direção de W. Muitas horas de conversa depois e uma mãe com a saudade apaziguada deste lado, agora posso escrever-te. Tem um mundo de coisas ocorridas e ocorrendo para contar-te.

Começo pelas mais antigas: lembra do livro que antecipei na última carta (A Fera na Selva, do Henry James)? É um livro que fala de esperarmos durante uma vida inteira por uma fera que – escondida na selva – poderá dar o bote a qualquer momento, por um grande acontecimento que venha a justificar o estado de espera, que venha a nos erguer do comum. Pensei nele durante semanas. Um livro instigante, profundo em conteúdo e bonito na forma (na edição da Cosac Naif, as cores das páginas e dos tipos impressos acompanham a densidade da trama).

O doutorado? É outra longa (e tristemente chata) história. Conto da outra vez, senão isso se arrasta.

Quero te saber. Eu, que dessa vez só fiz transbordamentos, quero te saber. Conta? Mantem-se a idéia da vinda ao sul em outubro?

Beijo,

CeciLia

(Epígrafe: Ângela Toledo - Imagem: Hugo Amador)

domingo, 16 de agosto de 2009

angústia: uma ordem sem palavras


Cecilia,


Recebi seu torpedo e seu recado carinhoso na caixa postal do celular e, acredite, indaguei-me todos esses dias o porquê das palavras me faltarem para te dizer de alguma coisa... Eu poderia te responder com a simplicidade da ordem social: sim, querida, tudo bem. Como diria um amigo meu, lá em casa todos comem. Mas, não seria justa com você, nem honesta comigo. Também poderia te responder com meu desagrado por todo mês o dinheiro terminar antes dos dias, por ser difícil esse tempo de ver os filhos crescidos, ávidos pela vida lá fora... Ou poderia comentar sobre minha profissão, que me obriga às mazelas humanas, sobre o quanto me assusta essa história de pessoas morrendo por causa de um vírus e pelo descaso do poder público. Poderia ainda passar uma hora ou mais esbravejando minha indignação e minha revolta com os Sarneys e Bispos que me fazem lamentar minha cidadania... Suspiro. Cecília, eu te encheria os ouvidos e ainda assim, acho que não daria conta do que me vai por dentro.


A verdade, minha amiga tão querida, é que não sei. Oscilo entre uma alegria, que eu chamaria de simplória, só de olhar para a luminosidade do dia e uma agonia de quem caminha por labirintos escuros, secretos e pessoais.


Como é fácil ser empanada num cotidiano que segue o cronograma das horas. E como é pouco, como é vão, como é pobre tudo que nos rege por números – essa linguagem que dispensa subjetividades e ignora entrelinhas. Como é vil, quanta crueldade!


Você me falava sobre o signo da impermanência... Suspiro mais fundo, pois às vezes me ocorre não saber muito dessa coisa de ser. Chego a me sentir corrompida na existência, visitada por invasoras urgências cotidianas. Pode ser o que fazer para a hora do almoço, as moedas e trocados para a passagem do ônibus das meninas, o telefone que toca com alguma demanda alheia, ou a sobrecarga do serviço bancário on-line que se recusa a fazer a operação. Como são frívolos os minutos dos dias e mesmo assim, implacáveis em exigências que aguardam respostas ponderadas e corteses. Por educação perdi minha vida, diz uma amiga minha predestinada a rir de si mesma.


Eu era bem pequena, Cecilia, mas ainda me lembro do que respondia aos adultos que me perguntavam sobre o que eu seria quando crescesse: profissional – eu dizia, sem margem para argumentos. O que eu não sabia era que desejos, mesmo os infantis, têm o poder de profecia.


Trabalhei por isso. Foi com orgulho que comecei a sustentar a mim e a minha casa. Teve gosto de autonomia e realização. Mas, em algum momento que não consigo precisar, isso deixou de ser o bastante, a conquista ganhou traços de confinamento e a liberdade, ares de solidão.


Não. Não se trata de arrependimento, nem tampouco deixei de gostar do ofício ao qual me dedico. Ao contrário, sou salva por ele todos os dias além de que, cada vez mais e definitivamente, me parece, são as histórias humanas que me comovem, especialmente daqueles que lutam a vida inteira... Mas já não basta. Reclamo por algo a mais, algo que me revigore. Ai, Cecilia, às vezes penso que sou feita do insaciável, uma matéria-prima que oxida no contato com o padrão, a constância, a regra. Por que não me com-formo?(!)


Conto com seu perdão pelo demorado silêncio e espero ter conseguido te responder, novamente me desculpando por envolvê-la nesse debate entre o cansaço e o anseio, o dia e seu avesso, o que é posto e o que estou a procura de inventar ser.


E você, querida, onde te encontro?


Com todo o meu afeto,
Eliza

imagem retirada de:
http://www.fotosensivel.com/modules.php?name=coppermine&file=displayimage&album=onesec&cat=0&seesec=14&pos=14

terça-feira, 28 de julho de 2009

Impermanências - por CeciLia

“Precário, provisório, perecível;

Falível, transitório, transitivo;

Efêmero, fugaz e passageiro.

Eis aqui um vivo.

Impuro, imperfeito, impermanente

Incerto, incompleto, inconstante;

Instável, variável, defectivo.

Eis aqui um vivo”

(Vivo, Lenine)


Elizaaaa

Pronto! Cheguei!
Como quem pula com os dois pés juntos do alto do terceiro degrau e sente, por um ínfimo, uma lufada de ar na cara despintada, os cabelos moverem-se levemente e a breve agonia do salto. Pronto. Cheguei a tempo de tentar responder a tua pergunta por esta vez, já que a danada resposta muda veloz feito os dias no calendário.

Muito prazer, eu nasci Cecilia Cassal. Em um campo de pouso de ventosa cidade litorânea do sul deste país. Primeiro não foi a casa, foi o espaço vasto, quando cheguei. O mar, antes de tudo, visto do alto. Depois as dunas grandes de areia branca e então o campo. Porque era noite funda, as lâmpadas deviam estar acesas na cabeceira da pista, a biruta movendo-se lentamente com o vento quente que talvez soprasse do norte, os capins do campo de pouso dobrando-se e brilhando um clarão de lua nova que iluminava também os poucos telhados, as dunas para além do campo e de novo o mar, que os olhos já sabiam correr assim, ligeiros, mesmo antes de pousar. Só depois viria o quarto, a cama encostada na parede, a quentura alagada do corpo da mãe, os ruidos da parteira, suas tesouras e bacias, a tia chegada de longe. Do outro lado da parede, o pai e a irmã aguardavam o evento. Aterrissei assim, vez primeira, na casa onde se amanhecia e adormecia em código morse - o pai radiotelegrafista da Varig -, no quintal cercado por acácias mimosas que ladeavam a igreja sobre cuja torre vigiava um São José de bondosos olhos com o Menino ao colo. E tinham cirros no céu nas tardes cheias de pandorgas e cachorros, moleques, bicicletas, antenas que se dobravam sobre as telhas nas noites de vendaval e o aço das asas coloridas dos pequenos aviões, nos fundos da casa onde nasci. E tinham gentes de línguas diferentes, que vinham e iam e tantas vezes chegaram no escuro, em noites de tempestade. Como pinguins que chegam com as correntes e descansam na praia, só para depois retomarem seu curso.

Assim nasci, Cecilia Cassal, numa noite quente de janeiro, sob o signo da impermanência. Todos os nomes que ganhei depois foram assimilados com a alegria de quem precisa deles e de muitos mais, para circunscrever-se. Já fui Mana, Mintsia, Ciça. Já fui Lia, Ceci, Batatinha. Gosto de pensar que a Cecilia lida com a ciência e a Lia com a poesia. Como fragmentar-me desse jeito pareceu, em alguns momentos, complicar a vida de quem me conhecia dos dois mundos, passei a assinar CeciLia. Sem acento, que acentos agudos são como punhais pendurados sobre as palavras. Integradas, a ciência e a poesia, pero no mucho. Como tu, já assimilei e depois devolvi, não sem muita gratidão, um outro sobrenome. Dia destes li que, depois de uma tarde especialmente boa, é muito difícil voltar para o próprio nome. Daí a gente abdica de todos eles e vira mesmo uma cor: Branca. Hoje parece-me que ser Amor é o melhor dos chamamentos: um vôo para o pertencimento, colo e cuidado.

Pois é, esse é um pedaço da resposta, Eliza querida, que jamais se pretenderá completa e - menos pela necessidade de esconderijos do que pela dificuldade em ordenar as idéias -, virá aos pedaços, uma revelação de cada vez, o mosaico se formando lentamente, que é como a vida nos agrupa as verdades. E muda. Como muda rápido, a vida, Eliza! Que pródiga ela é quando vira os ventos e lá estamos nós, metidas em um outro projeto, apaixonadas por um novo amor, fazendo as malas para uma próxima partida, desdobrando as velas sobre uma bahia ou os lençóis sobre o corpo do amado. Que novos nomes esperarão por adoção quando o calendário virar o ano que vem, a próxima década, o final da viagem? Que outras cores seremos, de que músicas nos comporemos, qual luz nos marcará a cena? Certa vez, em um pequeno Cessna, tive a possibilidade de sobrevoar o deserto de Nazca, Perú. Como aquelas figuras, somente visualizadas quando olhadas bem do alto, hoje penso que assim também será a compreensão destas coisas todas: só quando sobrevoarmos a nossa história teremos a noção dos desenhos formados. Antes não. Pode me dizer onde se compra o bilhete? Precisa-se passaporte?

Um beijo, irmã de tantos e bons nomes. Na próxima vez, quero falar-te sobre um novo livro cuja leitura iniciei neste final de semana, A Fera na Selva, de Henry James. Um daqueles de fazer parar o tempo só para pensarpensarpensarpensar... mas ainda é cedo, que preciso colocar umas idéias sob a boina. Fica bem.

CeciLia
(Imagem: Ricardo Araújo)

quarta-feira, 22 de julho de 2009

me perdendo é que me encontro - por Eliza

Cecilia, querida minha,


Nunca fui muito boa nas brincadeiras de esconder. Desde criança, os esconderijos me afligiam, especialmente aqueles de onde não conseguia controlar os passos que deveriam me descobrir. Um pouco mais tarde, quando as palavras tomaram o centro da cena, também com elas eu me revelava sem pudores e cheia de veemências e impulsividades. Quantas vezes fui desastrada por isso?! Nossa, nem sei! Só muito tempo depois aprendi o valor de silêncios. E mais tarde ainda, de recolhimentos...


Talvez por isso, esse o quê sobre o qual você me indaga primeiro tenha me inquietado, como os perseguidores da infância. Entretanto, rápido, num rodopio, encontrei-me em outro lugar nesta brincadeira que você propôs: saída do esconderijo, de cara pro céu e pro sol, era eu o perdigueiro, era eu o caçador, era eu quem investigava o que quer que se esconda... o que quer que seja esse imutável que recebe as circunstâncias mais diversas, coloridos sazonais, e lá permanece, fiel como a rocha...


Assim, parti na missão que me propuseste, e carreguei comigo as últimas palavras de um amigo, a quem ainda hei de te apresentar. Na última vez em que estive com ele, suas poucas palavras, já que quem falou quase sem parar fui eu, foram para me lembrar de nossa condição aprendiz, de nosso não saber, de nossa infinita ignorância... Lembrou-me disso como a condição imprescindível para a caminhada, assim como para as paragens.


Que outra coisa, portanto, posso te dizer além de que não sei... e porque não sei, suponho, achando e perdendo respostas, para tornar a procurá-las... Mas reconheço três significantes que se embrenham e se separam como se deles eu não pudesse me livrar nunca: o desejo, o amor e a responsabilidade.


Não sei dizer de quantas formas eles podem se organizar (e se desorganizar...), pois que parece multiplicarem-se em mil facetas, mil disfarces, e ainda por cima, virem adereçados de tal forma, que por vezes mal consigo reconhecê-los... Mas exigem-me comprometimento, cada um convocando a negociação com os outros; nenhum dos três concordando com abdicação ou negligência. Três anjos e três algozes; três crianças e três anciãos.


Às vezes, querida, muitas vezes, para ser mais verdadeira, eu me perdi até do meu nome. Mas, convenhamos, essa coisa de assinatura não é tão simples como parece, veja só: nasci com nome composto, por desejo do meu pai: Maria, por desejo materno: Eliza. Incapazes da decisão aceitaram-me por junção: Maria Eliza, Pereira Nunes (de mãe), Maciel (de pai)... Passei a vida tentando encurtar meu nome, sempre com medo de que o interlocutor não esperasse até o final da minha apresentação, especialmente porque eu ainda deveria acrescentar elizacom”z”porfavor... assim, sem respiração... Ou não era eu, entende?


Como se fosse pouco, com apenas um ano, tive uma babá chamada Maurita, a quem por pura incompetência, chamava de Iti... batizou-me, acho que por retaliação, de Pitty. E como profecia de fada-madrinha, o apelido virou carinho e acompanhou-me vida afora... E lá ia eu tentando saber quem eu mesma era... E, como por carinho não se recusa nada, lá ia eu respondendo a uma tia que me chamava de Mali, uma prima que preferia Maloliza, uma amiga que inventou Maiza, e depois achando grande demais, encurtou-me: Mai. E tudo isso era eu? Mas afinal, quem eu era?


Aos poucos fui descobrindo ainda outros desdobramentos. Se, por exemplo, me chamam ao telefone D. Maria, por favor. Pode estar certa: ou é credor ou ação de marketing... Meu Deus, quantas possibilidades pode haver num único nome!


Passou-se algum tempo e foi chegando o dia do meu casamento, e com ele a oferta de Camillo. Achei por bem acrescentá-lo ao final do nome, sem a retirada de nenhum daquele já tão comprido. Provavelmente não queria deixar de ser filha, você deve estar pensando. É possível, é provável...


Respondi ainda ao delicado chamado de Amor. Assim, como nome próprio e, mais tarde, Mãe, também assim, como se fosse a única.


Veio a separação... e o convite a dispensar o Camillo... Confesso: metade foi alívio, a outra metade, ressentimento. Mas, acho que dispensas causam mesmo isso, não? Agora, diga-me: naquele momento tornei-me menos? Ou recuperei a autenticidade?


Com a continuação da jornada, já ganhei pseudônimos, já me nomeei eu mesma com o nome de outra, e ainda assim, eu.


E agora me vem você, com esse algo que me anima, esse algo que fornece sentido, esse algo inominável, e tão único quanto a digital ou o DNA... que não mora num nome, mas confere identidade, não é genético e tampouco aprendido, e que sendo singular só existe porque plural, e porque perdido, encontra-se em algum lugar... Ah, essas brincadeiras de esconde-esconde... Mas, afinal, e você, onde se revela?


A tua espera,
Eliza
imagem de Tude Oswald - retirada de www.overmundo.com.br


quinta-feira, 16 de julho de 2009

O Tempo, esse filho - por CeciLia

Tudo o que muda a vida

vem quieto, no escuro,

sem preparos de aguardar.

(Josué Guimarães)


Querida,

Há dias tua carta espreitava, impressa, sobre a minha mesa. Não, isso não, que espreitar é coisa de olhar enviesado, de segredo ruim, de via curva e definitivamente não gosto do caminho indireto. Tua carta esperava, agora sim, metamorfoseando lentamente o que precisava ser entendido, a borboleta que ainda não terminou de se transformar pousada sobre a madeira velha. Passou-se mais de uma semana, mas isso não é importante. Poderia ter sido um século e o texto continuaria ali, lentas asas descansando suas revelações.

Várias vezes comecei a escrever-te, Eliza, várias. Mas o tempo é um filho a quem sempre dedicamos dois olhares, o da incerteza e o do medo. A incerteza por jamais sabermos se estamos fazendo o melhor dele. E o medo de que esse filho cesse prematuramente, antes que tivéssemos lhe dito tudo o que se deve dizer. Porque, ao contrário do que dizem por aí, querida, e nisso eu acredito desde sempre, não é o que se faz, o que conta. Tudo o que se faz pode ser feito de outra forma, a coisa-ação é refazível. O problema é com o que se diz. A Palavra, essa seta lançada que não se recupera, é a quem se deve o respeito, e se aqui explicito o lugar-comum do adágio popular é porque também eu sou assim, comum como uma frase feita, e aceitar isso é conforto e desprendimento. Por isso a demora em responder-te, por esse cuidado devido.

Me contas sobre a intranqüilidade bem-vinda nos meados da quinta década e eu sei dela. De modos pouco diferentes a vivemos – profissional e pessoalmente – em nossos cotidianos, no olhar que os filhos nos destinam, desafiando-nos simultaneamente à superação e ao enquadramento, nos terríveis óculos que passam a exigir um convite cada vez mais assíduo, partindo do jornal matinal ao cardápio do restaurante, nas demandas que nos trazem aqueles que, como nós, inconformam-se com o fato de que o casulo por vezes tente limitar o vôo. Não tenho medo da velhice, Eliza, não tenho, que há muito aprendi a dizer olá às rugas, quando me surgem, e dar-lhes ou não um jeito ameno depois. Tenho medo do mau envelhecimento, do boicote aos planos, da falta deles, da acomodação, do auto-plágio que nos repete, repete, repete... Se vale aqui uma brincadeira, tenho medo de nunca aprender a surfar – e olhe que isso está cada vez mais distante. Mas já tive medo sim, e muito, dessa senescência mais estética do que mental, do que seria quando o colágeno degenerasse sob a pele dos malares e algum volume se acumulasse no tronco, revestindo os ossos do quadril e os flancos, dessa morte programada e anunciada em cada comercial de televisão.

Falávamos sobre respostas e porque isso também assume a função de marcador das mudanças em mim, encontro uma história a contar. Uma vez pensava que ficávamos velhos ao perdermos a capacidade de perguntar. Assim, vigiava-me para saber secretamente sobre as possibilidades de ter perguntas sempre frescas à disposição, como se isso fosse um elixir que garantisse alguma imunidade ao tempo. Ao não ter perguntas, importava para mim as de outros. Depois, troquei de ambição, pois o que não me satisfazia eram as respostas de que dispunha às perguntas de então, e apresentou-se a mulher adulta. Pois é, abdiquei também delas. Não conseguia contê-las, controlá-las, mensurá-las como me foi ensinado. Hoje, surpreende-me a descoberta de perguntas implícitas nas respostas que sequer busquei, diversão e apaziguamento. Talvez seja feita dessa matéria, a velhice, mas só talvez, Eliza querida, que esse Tempo, implacável e maravilhoso, tem perguntas a mancheias e respostas que mudam como um horizonte, quando se avança sobre o mar do teu Rio. Ou sobre as coxilhas, no pampa.

Inconcluir é tão bom! Remete ao processo, ao que há de vir, ao ritmo andante. Neste ponto te deixo, não sem antes uma provocação: há algo imutável, nessa trilha. Uma paisagem que não se transforma, por mais longe que caminhemos, um relevo que ondula, mas segue perfeito. Esse imutável talvez seja o verdadeiro fio condutor que atravessa e une as contas do colar. O que é, Eliza? O que é?

Te abraço, fica bem.

CeciLia

(imagem: Sérgio Rodrigo)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

sempre metamorfose - por Eliza

Cecilia,

Clara, claridade, quanta luz! Diga a ela que pode entrar, e que então faça-se o dia! A casa é toda sua. Bem-vindo seja o seu inusitado tempo, seu irreverente olhar dos olhos que já se sabem donos da verdadeira nudez. Tomo emprestado seu ousar o dia e sua urgência em respostas, atalhos para as próximas perguntas. A vida, enquanto se oferece tão bem à metáfora da borboleta e seu casulo é sempre regozijo. Bicho-seda, coisa-rara, coisa-cara. Mas a beleza, a incontestável beleza da juventude, é tanta, que dela em nós nos embriagamos de tal modo, que disso só nos damos conta quando do tempo da sobriedade. Então contemplamos as fotos, e nos revemos com olhos de muito tempo depois. Enquanto jovens, tudo é brinquedo para a nossa avidez, e o tempo, algo que pensamos poder modelar com as mãos. Só num depois, que supúnhamos que não chegaria, ao dobrar de uma esquina, numa correria qualquer do dia, que um espelho d’água, sempre um espelho, reflete a escultura da qual o tempo foi autor e nós, matéria-prima.

Então, pegas de surpresa, entendemos que depois do voo, depois de toda a magnitude de nossas asas, a metamorfose seguiu seu curso ininterrupto, feroz, certeiro e irremediável. Sim, há metamorfose depois da borboleta. Num tempo em que muitas respostas foram encontradas, longe de terem se tornado certezas, elas nos apontam às relatividades. Aquilo que nunca foi para sempre, agora não é mais uma frase de efeito. É, antes, um efeito em si, visceral, sanguíneo, parte que nos é parte. História.

Provavelmente, o tempo ainda nos será generoso e farto, entretanto não mais uma ilusão de eternidade, assim como a beleza não virá mais com a mesma gratuidade. Eis aí a nossa maior dádiva e o nosso maior desafio: a consciência disso. Bendita dermatologia que nos revigora a pele, salve a ginástica que nos enrijece a musculatura, e os filhos já crescidos que nos obrigam às novas compreensões!

O que me intriga é que não encontro serenidade, como os mais velhos me anteciparam, em promessas, com relatos de dias repletos de complacência e aceitação, uma medida de moderação, uma calmaria no lidar com a realidade, um querer por paz, uma quietude... Cecilia! Socorro! Não encontro nada disso nos meus dias. E muito menos durantes as noites que me roubam as madrugadas... E o que deve ser pior, não só não encontro nada disso, como não anseio por encontrar, pelo contrário: sofro com a perspectiva de qualquer coisa parecida...

Uma vez, não me recordo bem das circunstâncias, me disseram que o coração não é o castelo onde residem as paixões, mas na senzala do corpo humano – o fígado – onde estas encontravam sua morada. Como assim?! – Lembro-me do meu espanto e da minha decepção. – O coração não é o dono da vida, o centro do ritmo e da pulsação, a morada de toda nobreza existencial? Aos poucos, no entanto, minha indignação foi cedendo até que compreendi o quanto era coerente que nossa central metabólica fosse o habitat das paixões, com todo risco de intoxicação e hemorragia. Menos rosa e mais vermelho. Menos lírico e mais real. Ainda assim, quero a vida que habita esse território menos de acordo.

Mas não é fácil. Ultimamente, venho me ressentindo dos saberes que me obrigam a uma ponderação, assim como das obrigações que determinam que eu renegocie os desejos com a exigência da parcimônia. Parte de mim chama a isso de maturidade; a outra parte, de envelhecimento. Nesta esquizofrenia todo lirismo ganha contornos de alegoria, de pensamento onírico. Nela, a realidade é infinitamente mais intestinal, mais hepatológica, mais exigente no processamento dos vícios e no entendimento de que os sonhos da juventude cederam espaço à digestão do tempo. Mas, há de ser para o reencontro do prazer. Há de ser.

Um beijo,
Eliza

foto: retirada de http://blog.vendamuitomais.com.br/2009/04/13/luz-no-fim-do-tunel/



quinta-feira, 2 de julho de 2009

O medo no paralelo 30 e outras histórias - por CeciLia

“ Não me conformo nem comigo
nem com os outros.
Sou um pouco de mar,
quebrando pelas ruas”
Ângelo Giácomo
É tão contundente, minha querida Eliza, a tua frase “ visibilidade e esconderijo, duas faces do mesmo anseio: a proteção”. Nossa! Poderia dar um belo artigo, uma tese inteira ou uma conversa de dias. Ela evocou tantas coisas em mim que resolvi começar a escrever-te pensando um pouco por aí. Por ser fato conhecido de nem ser preciso ir muito no fundo para encontrar aqui uma campônia que nada sabe sobre os determinantes da política internacional, acabei por pensar em algo que tua afirmação lembrou: quando a gente brinca de lobo mau, é pra disfarçar o medo. Paradoxalmente, nos aproximamos do que nos apavora para ganharmos a falsa sensação da força. Primordial e irresgatável, este medo, ainda quando se mostra imenso, (sabemos ser esta apenas a parte apresentável, o que fica acima da superfície), é sempre e tão somente a parte que extravasou. O medo, o medo mesmo, é muito maior. Aliás, para quebrar um pouco da seriedade de que esta carta começa a se revestir, deixa eu cantar um pedacinho do Belchior: “a vida, realmente, é diferente, quer dizer, a vida é muito pior”.

Agora, como é que as pessoas fazem para esquivar-se? Sei lá. Eu canto (porque o momento existe, e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste, sou poeta, já diria aquela outra Cecilia, de quem eu também teria querido ser irmã). Caminho, lato e stricto sensu. Me atiro em aventuras maiores do que as minhas próprias pernas saberiam. Mergulho e me afogo. Retorno à superfície. Procuro pertencimentos. Perco. Sublimo. Que outra maneira haveria de inconformar-me? Proteger-me? Sim, mas... quais perigos, mesmo, estão lá do lado de fora, que já não estivessem cá dentro?

Me falas sobre a economia da vida como um grande paradoxo para a preservação dela e eu mudo e não mudo de assunto, que a vida é vasta e o tempo tão curto. Hoje revi Clara. E porque Clara sempre tem as idéias tão nas pontas dos dedos, como prontas para alçar vôos até onde quer que estejamos, e por ser Clara tão viva, sempre me impressiona. Quando ela entra, os cabelos em desalinho, a forma que oscila entre a mulher e o moleque, não tem jeito, lembro um pequenino poema de que não sei a autoria: “estranho seu olhar, lembra mar, sendo castanho”. Assim é. Hoje contou-me um novo desencanto. Urgente como quem não quer perder nenhum tempo ou, um pouco pior, não quer pensar demais sobre o que lhe pode doer, foi logo dizendo: “não vai dar certo, não vai dar certo. Cedo demais faltou a fagulha dos olhos.” Não entendi o contexto, mas compreendi a guria. Clara é inflamada e inflamável. Acostumada ao entusiasmo (Deus em si), precisa de adesões rápidas aos seus movimentos na vida. Precisa quase da disponibilidade da fé, precisa da vivacidade que salta de seus olhos, precisa de pequenas e grandes demonstrações, como aquelas que dá ao mundo o tempo todo. A alegria em pessoa, Clara não sabe a placidez dos lagos que esperam o degelo. Ela É o degelo que não se conforma com a imobilidade do inverno longo. Com nenhum inverno. E por conhecê-la há tanto, sei que a vida lhe será difícil e rara. Por longos períodos, gelada. Só não sei como dizer-lhe isso. Por hora, conforto-me em saber que conta comigo, embora eu saiba que nem sempre encontra eco (devo ser dessas pessoas que ela julga um pouco lentas demais, com um brilho já meio gasto e incapazes de acompanhar toda a sua energia). De qualquer forma, escuto-a, quando me procura. Clara não economiza a vida. Muitas vezes diz coisas complicadas à senhora que sou, mas tento entendê-la. “CeciLia, é mais fácil tirar a roupa, do que mostrar os olhos”, e outra “a vergonha está mais perto do beijo do que a indiferença” ela diz. E ri. Clara lida diferente com seu medo. Numa economia às avessas, ela gasta a vida e brinca dizendo não saber se haverá reencarnação, por isso precisa conferir tudo hoje. Ai de mim, também não a julgo.

Das coisas práticas, irmã de bons augúrios, tenho a contar que – depois de algumas noites com horas bem reduzidas de sono e com a ajuda compreensiva de S. -, hoje entreguei o tal projeto, a documentação infindável, o escambau. Agora, por favor, torce os dedinhos, bate na madeira, faz uma oferenda a Iemanjá, dança a dança de Shiva, acende teus incensos. Parafraseando o Lenine: “a vida me chama e eu tenho que ir pra vida”. Com Sartre ou Clotet, com Aristóteles ou Morin, sei lá. Ainda tenho outras etapas, umas coisas difíceis-quase-impossíveis pra quem não teve a formação requerida. Mas eu tenho confiança, ah, uma confiança que é quase soberba. Essa, nem todo o medo do mundo conseguiu abalar.

Beijo de quem dormirá uma noite inteira em dias. Fica bem.

CeciLia
(Imagem: CeciLia Cassal - Varandas de Casapueblo - Punta Ballena - Uruguay)

quarta-feira, 1 de julho de 2009

...do porto, do rio e de Teerã - por Eliza

Cecilia,

Sua carta chegou e me tomou de solavanco em pleno domingo de inquietação. Ainda não tinha metabolizado as imagens de Neda Soltan, mártir de todo horror iraniano. E me encontrei várias vezes, nesses últimos dias, com o pensamento tomado pelas palavras de Paulo Coelho ao médico que aparecia naquelas imagens tentando, em vão, socorrer Neda, Harash Hejazi, amigo do escritor e também iraniano: Só a visibilidade pode protegê-lo – eram as palavras que acompanhavam o esforço em auxiliar Harash a deixar seu país. Como se sob a guarda dos olhos do mundo ele pudesse encontrar refúgio e proteção...

Neste último domingo, Hanif Z., outro iraniano, este recém refugiado na Alemanha, prefere o anonimato pelo receio de que, ao revelar-se, selasse com tragédia o destino de seus familiares, que permaneceram em Teerã. Visibilidade e esconderijo – duas faces do mesmo anseio: a proteção.

Ao ler as últimas notícias da capital iraniana no jornal, ainda pela manhã... não pude conter pelas rédeas o pensamento que cavalgava na travessia por este anseio, o da proteção, e pelo preço que pagamos, conscientes ou não, por tal “produto”.

Confiro com as pessoas da minha geração, e que se encontram no ponto oposto do mundo, distantes desta região em franco conflito político, e constato que esta sensação (somente ilusão?) de proteção normalmente vem acompanha de um sentido de solidez e constância, permanência e estabilidade, previsibilidade e conformidade. Há os que encontram isso, por exemplo, na subordinação, visto que ao “cumprirem ordens” se eximem da responsabilidade das decisões e escolhas. Ou pode acontecer justo ao contrário, pois há os que se sentem protegidos justamente na medida em que supõem a si mesmos no controle de todas as coisas.

Querida, não sei nem pretendo julgá-los. Muito ao contrário, como desde o início te disse, tais pensamentos só me trazem desconforto e inquietação. Para te ser realmente sincera, não caibo na conformidade, não sou disciplinada o suficiente nem cordata o bastante para proteger-me em asas alheias. E por outro lado, a castração já faz tempo me pegou de sola, sem dó nem piedade, destroçando toda e qualquer tentativa de onipotência ou ilusão de controle. O que me sobra?

E antes, mas afinal, do que temos tanto que nos proteger? Que medo é esse, que parece universal, e que ao discorrer pelo tempo vem nos impor um paradoxo: de que a preservação da vida consista na economia da mesma?

Tenho sim, eu também, o medo por companhia. Não deveria? Só se não tivesse aprendido nada. Que me acompanhe então – é o convite que lhe faço todos os dias. Às vezes ele me obedece, nem sempre. E nas vezes e ocasiões em que delibera como um antagonista, então me deparo com um ladrão, um perigoso assaltante dos recursos necessários, e em grande parte adquiridos, para lidar com o que só pode acontecer em risco, em incerteza, em angústia no instante: a vida.

Não suporto a idéia de viver somente como adiamento da morte. E, no entanto, quanto temor pelo sofrimento, pelo que há de vir, pelo que não poderei nem evitar, nem escolher. É claro que me sei agente – sujeito entre a causa e a consequência, esse hiato onde o desejo me faz porto de seu rio caudaloso e acidentado. Mas isso que é tanto, ainda assim, é somente parte. Ando em busca do que faça sentido viver, de tal modo, que a morte seja também um merecimento.

Então acho que você tem razão, se é que se pode chamar de razão o que realmente importa: o encontro com o outro. Encontro de tal forma verdadeiro, que nele cada um de nós se torna, no outro, um imortal.

Fico com as suas provocações e a espera de mais. Anseio deixar com você também o melhor de mim.

Um beijo carinhoso,
Eliza

imagem: pintura de Iman Malec, retirado do blog

http://blog.despertarfeminino.com.br/2008/02/iman-maleki-e-canalleto-gnios-da.html




domingo, 28 de junho de 2009

da generosidade que há na incerteza - por CeciLia


Eliza. Eliza Maciel.

Nome e sobrenome. No início pensei em dar-te os parabéns, como já fizeram a mim, CeciLia Cassal, assim explícita. Pela coragem de expor-se e, correndo riscos, ir no contra-fluxo dos conselhos mais freqüentes sobre uma preservação que é primária, sim, necessária, sim, mas que também é terrível quando visa manter as distâncias aceitáveis pelo senso comum (tão comum e pobre, normalmente, este senso). Depois desisti. Sabe por que, minha querida? Porque segue sendo, embora há muito mais tempo nos identifique na vida, apenas um nome. Cecilia, Eliza, Guilhermina, Lia, quantas mais, santas ou profanas, intelectuais ou mundanas, mães, profissionais, professoras, cientistas, escritoras, amigas, anônimas, quantas mais poderemos ser além de um nome que nos enquadre e codifique e – de uma certa forma – restrinja? Além disso, quantas vezes, e tu o sabes mais e melhor do que eu, nos escondemos atrás e apesar da pretensa verdade? De qualquer forma, sempre é bom avançar nesse pensamento, que revelar é esconder de novo.

Falavas em nosso encontro, um reconhecimento no meio da calçada, um restaurante tão carioca em pleno estacionamento e a intimidade de amigas de infâncias apresentadas há menos de duas horas. Sim, somente a alegria do Rio e do Porto, quando se encontram sob alguma pilastra de varanda, poderiam entender guris e meninas, alternar entre tu e você na mistura de segundas e terceiras pessoas e tantos tempos verbais numa cronologia assimétrica e por demais peculiar de histórias contadas em primeira voz. Mas, eu te pergunto, não são exatamente estes os momentos que fazem com que um dia se diferencie dos demais, tornando-se uma história boa de contar, neste semi-árido em que todos andamos? Não é essa disponibilidade à Vida o que faz com que ela, a Vida, se aproxime e nos abençoe? Essa a generosidade e a fluidez necessárias, isso que faz o encantamento das coisas que – se nos são contadas – é para que nos permitamos ser simultaneamente espelho e imagem, eco e palavra, significado e significante? Sabe, Eliza, cada vez mais penso estar aí a busca fundamental, a de poder compor com tudo isso dentro, para assimilar (ingerir, processar e metabolizar, numa linguagem visceral) o mundo do lado de fora.

Impulsiva que sou, depois de quinta-feira quero dar-te notícias sobre uns projetos um pouco desvairados em que ando me atirando. Coisas que me apresentam à incerteza, ainda que controlada em laboratório, técnicas (não poderia, neste momento, prescindir delas) de confrontar a dúvida no discurso e, agrupando seus fragmentos, refazer a realidade. Sobre a falta de respostas e sobre a imprecisão das perguntas. Mas espera, que preciso de umas pedrinhas a mais no alicerce da fala. Por hora, meu chronos, lógico!, terminou (recebe com um sorriso complacente, por favor, minha provocaçãozinha básica!).

Deixo-te com as palavras do amado Mario (o Benedetti, por supuesto)

“ Tu sabes
que podes
contar conmigo...
No hasta dos
o hasta diez,
sino contar
conmigo”.

Um upa forte, irmã de incertezas.

CeciLia
(Texto e Imagem: CeciLia Cassal, São Nicolau, Missões, Rio Grande do Sul)

sexta-feira, 26 de junho de 2009

paradigmas e paradoxos - por Eliza

Querida,

Nem sei quantas vezes ouvi que era preciso tomar cuidado, muito cuidado com estranhos. Depois do surgimento da internet, então, esse conselho virou quase obrigatório, passando até a fazer parte do rol de educação materna, norma de segurança. Além disso, quando me recordo dos motivos que me levaram à inauguração da esquina do desacato, onde escrevo sob o pseudônimo de Guilhermina, eu me deparo com a idéia de que, na liberdade de um nome que me encobrisse o próprio, pudesse falar de tudo que me ocorresse interessante, indignado, polêmico ou não, confesso ou ficção. Falar para quem fosse, tão anônimo quanto eu e por isso tão livre de mim e do meu olhar quanto eu seria do dele.

Havia um cansaço das relações cotidianas, do exercício profissional, dos compromissos que a nossa existência estabelece com os próximos, com aos que serve, com aos que ampara; um cansaço de existir sob os olhos atentos e alheios, a nos pedir coerência, explicações... a empenhar debates, confrontos, pedidos de respostas e referências. E lá fui eu... a revolucionária que gostaria de ser, a puta que desejei um dia me travestir, ou a sonhadora que se recusava a envelhecer. Lá fui eu em ânsia libertária e libertina, oferecendo-me outra a mim mesma. Lá fui eu nesta aventura internética, como quem compra um terreno na lua e navega pelo espaço na conquista de depois dos continentes...

Não durou nem um dia. Já no primeiro texto, lá estava eu comprometida em ser eu mesma, compromisso também com cada palavra, travando diálogo através de comentários em espaços (blogs) alheios. Lá estava eu procurando afins, identificações, histórias que me comovessem, pessoas que me capturassem... Não tem jeito, ou melhor, eu não tenho jeito... identificações e intimidade... uma proximidade que me permita tocar o outro de algum modo... e ser por ele transformada. Sina ou tendência, sintoma ou estilo, necessidade ou natureza, a verdade é que não consigo compreender essa nossa caminhada por esses tempos de tanta aridez, cólera e superficialidade de outra forma que não no estreitamento dos laços. Diz uma amiga de longa estrada, e muitas paragens, que enquanto as pessoas fazem mil “contatos”, eu faço uma relação... E, Cecília, acho que ela não faz disso um elogio.

Mas, fazer o que se nada me encanta mais que a história de cada um, seus sonhos e suas desilusões, seus tempos e contratempos, caminhos, descaminhos, perdas e reparações? O que fazer, me diga, se o que me comove são os encontros que acontecem entre pessoas, como se estivessem predestinadas a eles? Se as dores humanas o que me atormenta, assim como seus universos particulares, suas imperfeições, suas histórias de superação e idiossincrasias o que realmente me inquieta?

Por isso mesmo, como posso traduzir o que se processa em mim quando nos reconhecemos no meio da rua, sem nunca termos nos visto antes? Querida, eu te agradeço a oportunidade daquela tarde, quando este encontro virtual, entre a esquina e a Lua (em Libra), ganhou realidade e transformou uma varandinha e alguns copos de chope num piquenique no píer – porto alegre de um rio de janeiro em pleno mês de junho. Obrigada pela fraternidade, obrigada pela intimidade rápida, pela falta de pudores e máscaras, obrigada pelas imperfeições, justo elas que nos fazem tão humanas, tão femininas, tão fortes na vulnerável condição da existência. Sim, são demais os perigos dessa vida (pra quem tem paixão) – avisava o poetinha Vinícius lá em 1972 ... e, como quem lhe indagasse mais uma vez, também em poesia; Buarque, o Francisco, onze anos depois retrucava diz quantos desastres tem na minha mão... diz se é perigoso a gente ser feliz...

É assim que te abraço, nessa maravilhosa sensação de que a vida já passa dos quarenta e a gente continua se perguntando, se provocando, ousando querer mais, e melhor. E de novo. Uma saudação ao perigo de estarmos vivas. Desde já minha admiração, a partir daquele dia, minha amizade: é o que te ofereço. Se te convido? A descer o rio o ano todo, fazendo do porto miragem, depois descanso e novamente partida até o encontro do mar e do horizonte.

Poucos prazeres são maiores que a impressão de encontrar nossos pares, as interseções onde nos abraçamos e nos sabemos menos sós e, ao mesmo tempo, nos reconhecemos tão diferentes que é preciso abrir-se para acolher do que há a aprender.

Muito obrigada, o prazer é meu,
Eliza

foto: 07.08.2006 - HUDSON PONTES - RJ - Baía de Guanabara ao entardecer - Barco à vela passa por baixo da Auto-estrada Linha vermelha na entrada da Ilha do Governador.