quinta-feira, 16 de julho de 2009

O Tempo, esse filho - por CeciLia

Tudo o que muda a vida

vem quieto, no escuro,

sem preparos de aguardar.

(Josué Guimarães)


Querida,

Há dias tua carta espreitava, impressa, sobre a minha mesa. Não, isso não, que espreitar é coisa de olhar enviesado, de segredo ruim, de via curva e definitivamente não gosto do caminho indireto. Tua carta esperava, agora sim, metamorfoseando lentamente o que precisava ser entendido, a borboleta que ainda não terminou de se transformar pousada sobre a madeira velha. Passou-se mais de uma semana, mas isso não é importante. Poderia ter sido um século e o texto continuaria ali, lentas asas descansando suas revelações.

Várias vezes comecei a escrever-te, Eliza, várias. Mas o tempo é um filho a quem sempre dedicamos dois olhares, o da incerteza e o do medo. A incerteza por jamais sabermos se estamos fazendo o melhor dele. E o medo de que esse filho cesse prematuramente, antes que tivéssemos lhe dito tudo o que se deve dizer. Porque, ao contrário do que dizem por aí, querida, e nisso eu acredito desde sempre, não é o que se faz, o que conta. Tudo o que se faz pode ser feito de outra forma, a coisa-ação é refazível. O problema é com o que se diz. A Palavra, essa seta lançada que não se recupera, é a quem se deve o respeito, e se aqui explicito o lugar-comum do adágio popular é porque também eu sou assim, comum como uma frase feita, e aceitar isso é conforto e desprendimento. Por isso a demora em responder-te, por esse cuidado devido.

Me contas sobre a intranqüilidade bem-vinda nos meados da quinta década e eu sei dela. De modos pouco diferentes a vivemos – profissional e pessoalmente – em nossos cotidianos, no olhar que os filhos nos destinam, desafiando-nos simultaneamente à superação e ao enquadramento, nos terríveis óculos que passam a exigir um convite cada vez mais assíduo, partindo do jornal matinal ao cardápio do restaurante, nas demandas que nos trazem aqueles que, como nós, inconformam-se com o fato de que o casulo por vezes tente limitar o vôo. Não tenho medo da velhice, Eliza, não tenho, que há muito aprendi a dizer olá às rugas, quando me surgem, e dar-lhes ou não um jeito ameno depois. Tenho medo do mau envelhecimento, do boicote aos planos, da falta deles, da acomodação, do auto-plágio que nos repete, repete, repete... Se vale aqui uma brincadeira, tenho medo de nunca aprender a surfar – e olhe que isso está cada vez mais distante. Mas já tive medo sim, e muito, dessa senescência mais estética do que mental, do que seria quando o colágeno degenerasse sob a pele dos malares e algum volume se acumulasse no tronco, revestindo os ossos do quadril e os flancos, dessa morte programada e anunciada em cada comercial de televisão.

Falávamos sobre respostas e porque isso também assume a função de marcador das mudanças em mim, encontro uma história a contar. Uma vez pensava que ficávamos velhos ao perdermos a capacidade de perguntar. Assim, vigiava-me para saber secretamente sobre as possibilidades de ter perguntas sempre frescas à disposição, como se isso fosse um elixir que garantisse alguma imunidade ao tempo. Ao não ter perguntas, importava para mim as de outros. Depois, troquei de ambição, pois o que não me satisfazia eram as respostas de que dispunha às perguntas de então, e apresentou-se a mulher adulta. Pois é, abdiquei também delas. Não conseguia contê-las, controlá-las, mensurá-las como me foi ensinado. Hoje, surpreende-me a descoberta de perguntas implícitas nas respostas que sequer busquei, diversão e apaziguamento. Talvez seja feita dessa matéria, a velhice, mas só talvez, Eliza querida, que esse Tempo, implacável e maravilhoso, tem perguntas a mancheias e respostas que mudam como um horizonte, quando se avança sobre o mar do teu Rio. Ou sobre as coxilhas, no pampa.

Inconcluir é tão bom! Remete ao processo, ao que há de vir, ao ritmo andante. Neste ponto te deixo, não sem antes uma provocação: há algo imutável, nessa trilha. Uma paisagem que não se transforma, por mais longe que caminhemos, um relevo que ondula, mas segue perfeito. Esse imutável talvez seja o verdadeiro fio condutor que atravessa e une as contas do colar. O que é, Eliza? O que é?

Te abraço, fica bem.

CeciLia

(imagem: Sérgio Rodrigo)

Um comentário:

marcia cardeal disse...

Cada palavra, cada vírgula um estremecimento de identificações. Prazer em conhecer este espaço. Muito prazer. Muitomuito. beijos