terça-feira, 28 de julho de 2009

Impermanências - por CeciLia

“Precário, provisório, perecível;

Falível, transitório, transitivo;

Efêmero, fugaz e passageiro.

Eis aqui um vivo.

Impuro, imperfeito, impermanente

Incerto, incompleto, inconstante;

Instável, variável, defectivo.

Eis aqui um vivo”

(Vivo, Lenine)


Elizaaaa

Pronto! Cheguei!
Como quem pula com os dois pés juntos do alto do terceiro degrau e sente, por um ínfimo, uma lufada de ar na cara despintada, os cabelos moverem-se levemente e a breve agonia do salto. Pronto. Cheguei a tempo de tentar responder a tua pergunta por esta vez, já que a danada resposta muda veloz feito os dias no calendário.

Muito prazer, eu nasci Cecilia Cassal. Em um campo de pouso de ventosa cidade litorânea do sul deste país. Primeiro não foi a casa, foi o espaço vasto, quando cheguei. O mar, antes de tudo, visto do alto. Depois as dunas grandes de areia branca e então o campo. Porque era noite funda, as lâmpadas deviam estar acesas na cabeceira da pista, a biruta movendo-se lentamente com o vento quente que talvez soprasse do norte, os capins do campo de pouso dobrando-se e brilhando um clarão de lua nova que iluminava também os poucos telhados, as dunas para além do campo e de novo o mar, que os olhos já sabiam correr assim, ligeiros, mesmo antes de pousar. Só depois viria o quarto, a cama encostada na parede, a quentura alagada do corpo da mãe, os ruidos da parteira, suas tesouras e bacias, a tia chegada de longe. Do outro lado da parede, o pai e a irmã aguardavam o evento. Aterrissei assim, vez primeira, na casa onde se amanhecia e adormecia em código morse - o pai radiotelegrafista da Varig -, no quintal cercado por acácias mimosas que ladeavam a igreja sobre cuja torre vigiava um São José de bondosos olhos com o Menino ao colo. E tinham cirros no céu nas tardes cheias de pandorgas e cachorros, moleques, bicicletas, antenas que se dobravam sobre as telhas nas noites de vendaval e o aço das asas coloridas dos pequenos aviões, nos fundos da casa onde nasci. E tinham gentes de línguas diferentes, que vinham e iam e tantas vezes chegaram no escuro, em noites de tempestade. Como pinguins que chegam com as correntes e descansam na praia, só para depois retomarem seu curso.

Assim nasci, Cecilia Cassal, numa noite quente de janeiro, sob o signo da impermanência. Todos os nomes que ganhei depois foram assimilados com a alegria de quem precisa deles e de muitos mais, para circunscrever-se. Já fui Mana, Mintsia, Ciça. Já fui Lia, Ceci, Batatinha. Gosto de pensar que a Cecilia lida com a ciência e a Lia com a poesia. Como fragmentar-me desse jeito pareceu, em alguns momentos, complicar a vida de quem me conhecia dos dois mundos, passei a assinar CeciLia. Sem acento, que acentos agudos são como punhais pendurados sobre as palavras. Integradas, a ciência e a poesia, pero no mucho. Como tu, já assimilei e depois devolvi, não sem muita gratidão, um outro sobrenome. Dia destes li que, depois de uma tarde especialmente boa, é muito difícil voltar para o próprio nome. Daí a gente abdica de todos eles e vira mesmo uma cor: Branca. Hoje parece-me que ser Amor é o melhor dos chamamentos: um vôo para o pertencimento, colo e cuidado.

Pois é, esse é um pedaço da resposta, Eliza querida, que jamais se pretenderá completa e - menos pela necessidade de esconderijos do que pela dificuldade em ordenar as idéias -, virá aos pedaços, uma revelação de cada vez, o mosaico se formando lentamente, que é como a vida nos agrupa as verdades. E muda. Como muda rápido, a vida, Eliza! Que pródiga ela é quando vira os ventos e lá estamos nós, metidas em um outro projeto, apaixonadas por um novo amor, fazendo as malas para uma próxima partida, desdobrando as velas sobre uma bahia ou os lençóis sobre o corpo do amado. Que novos nomes esperarão por adoção quando o calendário virar o ano que vem, a próxima década, o final da viagem? Que outras cores seremos, de que músicas nos comporemos, qual luz nos marcará a cena? Certa vez, em um pequeno Cessna, tive a possibilidade de sobrevoar o deserto de Nazca, Perú. Como aquelas figuras, somente visualizadas quando olhadas bem do alto, hoje penso que assim também será a compreensão destas coisas todas: só quando sobrevoarmos a nossa história teremos a noção dos desenhos formados. Antes não. Pode me dizer onde se compra o bilhete? Precisa-se passaporte?

Um beijo, irmã de tantos e bons nomes. Na próxima vez, quero falar-te sobre um novo livro cuja leitura iniciei neste final de semana, A Fera na Selva, de Henry James. Um daqueles de fazer parar o tempo só para pensarpensarpensarpensar... mas ainda é cedo, que preciso colocar umas idéias sob a boina. Fica bem.

CeciLia
(Imagem: Ricardo Araújo)

quarta-feira, 22 de julho de 2009

me perdendo é que me encontro - por Eliza

Cecilia, querida minha,


Nunca fui muito boa nas brincadeiras de esconder. Desde criança, os esconderijos me afligiam, especialmente aqueles de onde não conseguia controlar os passos que deveriam me descobrir. Um pouco mais tarde, quando as palavras tomaram o centro da cena, também com elas eu me revelava sem pudores e cheia de veemências e impulsividades. Quantas vezes fui desastrada por isso?! Nossa, nem sei! Só muito tempo depois aprendi o valor de silêncios. E mais tarde ainda, de recolhimentos...


Talvez por isso, esse o quê sobre o qual você me indaga primeiro tenha me inquietado, como os perseguidores da infância. Entretanto, rápido, num rodopio, encontrei-me em outro lugar nesta brincadeira que você propôs: saída do esconderijo, de cara pro céu e pro sol, era eu o perdigueiro, era eu o caçador, era eu quem investigava o que quer que se esconda... o que quer que seja esse imutável que recebe as circunstâncias mais diversas, coloridos sazonais, e lá permanece, fiel como a rocha...


Assim, parti na missão que me propuseste, e carreguei comigo as últimas palavras de um amigo, a quem ainda hei de te apresentar. Na última vez em que estive com ele, suas poucas palavras, já que quem falou quase sem parar fui eu, foram para me lembrar de nossa condição aprendiz, de nosso não saber, de nossa infinita ignorância... Lembrou-me disso como a condição imprescindível para a caminhada, assim como para as paragens.


Que outra coisa, portanto, posso te dizer além de que não sei... e porque não sei, suponho, achando e perdendo respostas, para tornar a procurá-las... Mas reconheço três significantes que se embrenham e se separam como se deles eu não pudesse me livrar nunca: o desejo, o amor e a responsabilidade.


Não sei dizer de quantas formas eles podem se organizar (e se desorganizar...), pois que parece multiplicarem-se em mil facetas, mil disfarces, e ainda por cima, virem adereçados de tal forma, que por vezes mal consigo reconhecê-los... Mas exigem-me comprometimento, cada um convocando a negociação com os outros; nenhum dos três concordando com abdicação ou negligência. Três anjos e três algozes; três crianças e três anciãos.


Às vezes, querida, muitas vezes, para ser mais verdadeira, eu me perdi até do meu nome. Mas, convenhamos, essa coisa de assinatura não é tão simples como parece, veja só: nasci com nome composto, por desejo do meu pai: Maria, por desejo materno: Eliza. Incapazes da decisão aceitaram-me por junção: Maria Eliza, Pereira Nunes (de mãe), Maciel (de pai)... Passei a vida tentando encurtar meu nome, sempre com medo de que o interlocutor não esperasse até o final da minha apresentação, especialmente porque eu ainda deveria acrescentar elizacom”z”porfavor... assim, sem respiração... Ou não era eu, entende?


Como se fosse pouco, com apenas um ano, tive uma babá chamada Maurita, a quem por pura incompetência, chamava de Iti... batizou-me, acho que por retaliação, de Pitty. E como profecia de fada-madrinha, o apelido virou carinho e acompanhou-me vida afora... E lá ia eu tentando saber quem eu mesma era... E, como por carinho não se recusa nada, lá ia eu respondendo a uma tia que me chamava de Mali, uma prima que preferia Maloliza, uma amiga que inventou Maiza, e depois achando grande demais, encurtou-me: Mai. E tudo isso era eu? Mas afinal, quem eu era?


Aos poucos fui descobrindo ainda outros desdobramentos. Se, por exemplo, me chamam ao telefone D. Maria, por favor. Pode estar certa: ou é credor ou ação de marketing... Meu Deus, quantas possibilidades pode haver num único nome!


Passou-se algum tempo e foi chegando o dia do meu casamento, e com ele a oferta de Camillo. Achei por bem acrescentá-lo ao final do nome, sem a retirada de nenhum daquele já tão comprido. Provavelmente não queria deixar de ser filha, você deve estar pensando. É possível, é provável...


Respondi ainda ao delicado chamado de Amor. Assim, como nome próprio e, mais tarde, Mãe, também assim, como se fosse a única.


Veio a separação... e o convite a dispensar o Camillo... Confesso: metade foi alívio, a outra metade, ressentimento. Mas, acho que dispensas causam mesmo isso, não? Agora, diga-me: naquele momento tornei-me menos? Ou recuperei a autenticidade?


Com a continuação da jornada, já ganhei pseudônimos, já me nomeei eu mesma com o nome de outra, e ainda assim, eu.


E agora me vem você, com esse algo que me anima, esse algo que fornece sentido, esse algo inominável, e tão único quanto a digital ou o DNA... que não mora num nome, mas confere identidade, não é genético e tampouco aprendido, e que sendo singular só existe porque plural, e porque perdido, encontra-se em algum lugar... Ah, essas brincadeiras de esconde-esconde... Mas, afinal, e você, onde se revela?


A tua espera,
Eliza
imagem de Tude Oswald - retirada de www.overmundo.com.br


quinta-feira, 16 de julho de 2009

O Tempo, esse filho - por CeciLia

Tudo o que muda a vida

vem quieto, no escuro,

sem preparos de aguardar.

(Josué Guimarães)


Querida,

Há dias tua carta espreitava, impressa, sobre a minha mesa. Não, isso não, que espreitar é coisa de olhar enviesado, de segredo ruim, de via curva e definitivamente não gosto do caminho indireto. Tua carta esperava, agora sim, metamorfoseando lentamente o que precisava ser entendido, a borboleta que ainda não terminou de se transformar pousada sobre a madeira velha. Passou-se mais de uma semana, mas isso não é importante. Poderia ter sido um século e o texto continuaria ali, lentas asas descansando suas revelações.

Várias vezes comecei a escrever-te, Eliza, várias. Mas o tempo é um filho a quem sempre dedicamos dois olhares, o da incerteza e o do medo. A incerteza por jamais sabermos se estamos fazendo o melhor dele. E o medo de que esse filho cesse prematuramente, antes que tivéssemos lhe dito tudo o que se deve dizer. Porque, ao contrário do que dizem por aí, querida, e nisso eu acredito desde sempre, não é o que se faz, o que conta. Tudo o que se faz pode ser feito de outra forma, a coisa-ação é refazível. O problema é com o que se diz. A Palavra, essa seta lançada que não se recupera, é a quem se deve o respeito, e se aqui explicito o lugar-comum do adágio popular é porque também eu sou assim, comum como uma frase feita, e aceitar isso é conforto e desprendimento. Por isso a demora em responder-te, por esse cuidado devido.

Me contas sobre a intranqüilidade bem-vinda nos meados da quinta década e eu sei dela. De modos pouco diferentes a vivemos – profissional e pessoalmente – em nossos cotidianos, no olhar que os filhos nos destinam, desafiando-nos simultaneamente à superação e ao enquadramento, nos terríveis óculos que passam a exigir um convite cada vez mais assíduo, partindo do jornal matinal ao cardápio do restaurante, nas demandas que nos trazem aqueles que, como nós, inconformam-se com o fato de que o casulo por vezes tente limitar o vôo. Não tenho medo da velhice, Eliza, não tenho, que há muito aprendi a dizer olá às rugas, quando me surgem, e dar-lhes ou não um jeito ameno depois. Tenho medo do mau envelhecimento, do boicote aos planos, da falta deles, da acomodação, do auto-plágio que nos repete, repete, repete... Se vale aqui uma brincadeira, tenho medo de nunca aprender a surfar – e olhe que isso está cada vez mais distante. Mas já tive medo sim, e muito, dessa senescência mais estética do que mental, do que seria quando o colágeno degenerasse sob a pele dos malares e algum volume se acumulasse no tronco, revestindo os ossos do quadril e os flancos, dessa morte programada e anunciada em cada comercial de televisão.

Falávamos sobre respostas e porque isso também assume a função de marcador das mudanças em mim, encontro uma história a contar. Uma vez pensava que ficávamos velhos ao perdermos a capacidade de perguntar. Assim, vigiava-me para saber secretamente sobre as possibilidades de ter perguntas sempre frescas à disposição, como se isso fosse um elixir que garantisse alguma imunidade ao tempo. Ao não ter perguntas, importava para mim as de outros. Depois, troquei de ambição, pois o que não me satisfazia eram as respostas de que dispunha às perguntas de então, e apresentou-se a mulher adulta. Pois é, abdiquei também delas. Não conseguia contê-las, controlá-las, mensurá-las como me foi ensinado. Hoje, surpreende-me a descoberta de perguntas implícitas nas respostas que sequer busquei, diversão e apaziguamento. Talvez seja feita dessa matéria, a velhice, mas só talvez, Eliza querida, que esse Tempo, implacável e maravilhoso, tem perguntas a mancheias e respostas que mudam como um horizonte, quando se avança sobre o mar do teu Rio. Ou sobre as coxilhas, no pampa.

Inconcluir é tão bom! Remete ao processo, ao que há de vir, ao ritmo andante. Neste ponto te deixo, não sem antes uma provocação: há algo imutável, nessa trilha. Uma paisagem que não se transforma, por mais longe que caminhemos, um relevo que ondula, mas segue perfeito. Esse imutável talvez seja o verdadeiro fio condutor que atravessa e une as contas do colar. O que é, Eliza? O que é?

Te abraço, fica bem.

CeciLia

(imagem: Sérgio Rodrigo)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

sempre metamorfose - por Eliza

Cecilia,

Clara, claridade, quanta luz! Diga a ela que pode entrar, e que então faça-se o dia! A casa é toda sua. Bem-vindo seja o seu inusitado tempo, seu irreverente olhar dos olhos que já se sabem donos da verdadeira nudez. Tomo emprestado seu ousar o dia e sua urgência em respostas, atalhos para as próximas perguntas. A vida, enquanto se oferece tão bem à metáfora da borboleta e seu casulo é sempre regozijo. Bicho-seda, coisa-rara, coisa-cara. Mas a beleza, a incontestável beleza da juventude, é tanta, que dela em nós nos embriagamos de tal modo, que disso só nos damos conta quando do tempo da sobriedade. Então contemplamos as fotos, e nos revemos com olhos de muito tempo depois. Enquanto jovens, tudo é brinquedo para a nossa avidez, e o tempo, algo que pensamos poder modelar com as mãos. Só num depois, que supúnhamos que não chegaria, ao dobrar de uma esquina, numa correria qualquer do dia, que um espelho d’água, sempre um espelho, reflete a escultura da qual o tempo foi autor e nós, matéria-prima.

Então, pegas de surpresa, entendemos que depois do voo, depois de toda a magnitude de nossas asas, a metamorfose seguiu seu curso ininterrupto, feroz, certeiro e irremediável. Sim, há metamorfose depois da borboleta. Num tempo em que muitas respostas foram encontradas, longe de terem se tornado certezas, elas nos apontam às relatividades. Aquilo que nunca foi para sempre, agora não é mais uma frase de efeito. É, antes, um efeito em si, visceral, sanguíneo, parte que nos é parte. História.

Provavelmente, o tempo ainda nos será generoso e farto, entretanto não mais uma ilusão de eternidade, assim como a beleza não virá mais com a mesma gratuidade. Eis aí a nossa maior dádiva e o nosso maior desafio: a consciência disso. Bendita dermatologia que nos revigora a pele, salve a ginástica que nos enrijece a musculatura, e os filhos já crescidos que nos obrigam às novas compreensões!

O que me intriga é que não encontro serenidade, como os mais velhos me anteciparam, em promessas, com relatos de dias repletos de complacência e aceitação, uma medida de moderação, uma calmaria no lidar com a realidade, um querer por paz, uma quietude... Cecilia! Socorro! Não encontro nada disso nos meus dias. E muito menos durantes as noites que me roubam as madrugadas... E o que deve ser pior, não só não encontro nada disso, como não anseio por encontrar, pelo contrário: sofro com a perspectiva de qualquer coisa parecida...

Uma vez, não me recordo bem das circunstâncias, me disseram que o coração não é o castelo onde residem as paixões, mas na senzala do corpo humano – o fígado – onde estas encontravam sua morada. Como assim?! – Lembro-me do meu espanto e da minha decepção. – O coração não é o dono da vida, o centro do ritmo e da pulsação, a morada de toda nobreza existencial? Aos poucos, no entanto, minha indignação foi cedendo até que compreendi o quanto era coerente que nossa central metabólica fosse o habitat das paixões, com todo risco de intoxicação e hemorragia. Menos rosa e mais vermelho. Menos lírico e mais real. Ainda assim, quero a vida que habita esse território menos de acordo.

Mas não é fácil. Ultimamente, venho me ressentindo dos saberes que me obrigam a uma ponderação, assim como das obrigações que determinam que eu renegocie os desejos com a exigência da parcimônia. Parte de mim chama a isso de maturidade; a outra parte, de envelhecimento. Nesta esquizofrenia todo lirismo ganha contornos de alegoria, de pensamento onírico. Nela, a realidade é infinitamente mais intestinal, mais hepatológica, mais exigente no processamento dos vícios e no entendimento de que os sonhos da juventude cederam espaço à digestão do tempo. Mas, há de ser para o reencontro do prazer. Há de ser.

Um beijo,
Eliza

foto: retirada de http://blog.vendamuitomais.com.br/2009/04/13/luz-no-fim-do-tunel/



quinta-feira, 2 de julho de 2009

O medo no paralelo 30 e outras histórias - por CeciLia

“ Não me conformo nem comigo
nem com os outros.
Sou um pouco de mar,
quebrando pelas ruas”
Ângelo Giácomo
É tão contundente, minha querida Eliza, a tua frase “ visibilidade e esconderijo, duas faces do mesmo anseio: a proteção”. Nossa! Poderia dar um belo artigo, uma tese inteira ou uma conversa de dias. Ela evocou tantas coisas em mim que resolvi começar a escrever-te pensando um pouco por aí. Por ser fato conhecido de nem ser preciso ir muito no fundo para encontrar aqui uma campônia que nada sabe sobre os determinantes da política internacional, acabei por pensar em algo que tua afirmação lembrou: quando a gente brinca de lobo mau, é pra disfarçar o medo. Paradoxalmente, nos aproximamos do que nos apavora para ganharmos a falsa sensação da força. Primordial e irresgatável, este medo, ainda quando se mostra imenso, (sabemos ser esta apenas a parte apresentável, o que fica acima da superfície), é sempre e tão somente a parte que extravasou. O medo, o medo mesmo, é muito maior. Aliás, para quebrar um pouco da seriedade de que esta carta começa a se revestir, deixa eu cantar um pedacinho do Belchior: “a vida, realmente, é diferente, quer dizer, a vida é muito pior”.

Agora, como é que as pessoas fazem para esquivar-se? Sei lá. Eu canto (porque o momento existe, e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste, sou poeta, já diria aquela outra Cecilia, de quem eu também teria querido ser irmã). Caminho, lato e stricto sensu. Me atiro em aventuras maiores do que as minhas próprias pernas saberiam. Mergulho e me afogo. Retorno à superfície. Procuro pertencimentos. Perco. Sublimo. Que outra maneira haveria de inconformar-me? Proteger-me? Sim, mas... quais perigos, mesmo, estão lá do lado de fora, que já não estivessem cá dentro?

Me falas sobre a economia da vida como um grande paradoxo para a preservação dela e eu mudo e não mudo de assunto, que a vida é vasta e o tempo tão curto. Hoje revi Clara. E porque Clara sempre tem as idéias tão nas pontas dos dedos, como prontas para alçar vôos até onde quer que estejamos, e por ser Clara tão viva, sempre me impressiona. Quando ela entra, os cabelos em desalinho, a forma que oscila entre a mulher e o moleque, não tem jeito, lembro um pequenino poema de que não sei a autoria: “estranho seu olhar, lembra mar, sendo castanho”. Assim é. Hoje contou-me um novo desencanto. Urgente como quem não quer perder nenhum tempo ou, um pouco pior, não quer pensar demais sobre o que lhe pode doer, foi logo dizendo: “não vai dar certo, não vai dar certo. Cedo demais faltou a fagulha dos olhos.” Não entendi o contexto, mas compreendi a guria. Clara é inflamada e inflamável. Acostumada ao entusiasmo (Deus em si), precisa de adesões rápidas aos seus movimentos na vida. Precisa quase da disponibilidade da fé, precisa da vivacidade que salta de seus olhos, precisa de pequenas e grandes demonstrações, como aquelas que dá ao mundo o tempo todo. A alegria em pessoa, Clara não sabe a placidez dos lagos que esperam o degelo. Ela É o degelo que não se conforma com a imobilidade do inverno longo. Com nenhum inverno. E por conhecê-la há tanto, sei que a vida lhe será difícil e rara. Por longos períodos, gelada. Só não sei como dizer-lhe isso. Por hora, conforto-me em saber que conta comigo, embora eu saiba que nem sempre encontra eco (devo ser dessas pessoas que ela julga um pouco lentas demais, com um brilho já meio gasto e incapazes de acompanhar toda a sua energia). De qualquer forma, escuto-a, quando me procura. Clara não economiza a vida. Muitas vezes diz coisas complicadas à senhora que sou, mas tento entendê-la. “CeciLia, é mais fácil tirar a roupa, do que mostrar os olhos”, e outra “a vergonha está mais perto do beijo do que a indiferença” ela diz. E ri. Clara lida diferente com seu medo. Numa economia às avessas, ela gasta a vida e brinca dizendo não saber se haverá reencarnação, por isso precisa conferir tudo hoje. Ai de mim, também não a julgo.

Das coisas práticas, irmã de bons augúrios, tenho a contar que – depois de algumas noites com horas bem reduzidas de sono e com a ajuda compreensiva de S. -, hoje entreguei o tal projeto, a documentação infindável, o escambau. Agora, por favor, torce os dedinhos, bate na madeira, faz uma oferenda a Iemanjá, dança a dança de Shiva, acende teus incensos. Parafraseando o Lenine: “a vida me chama e eu tenho que ir pra vida”. Com Sartre ou Clotet, com Aristóteles ou Morin, sei lá. Ainda tenho outras etapas, umas coisas difíceis-quase-impossíveis pra quem não teve a formação requerida. Mas eu tenho confiança, ah, uma confiança que é quase soberba. Essa, nem todo o medo do mundo conseguiu abalar.

Beijo de quem dormirá uma noite inteira em dias. Fica bem.

CeciLia
(Imagem: CeciLia Cassal - Varandas de Casapueblo - Punta Ballena - Uruguay)

quarta-feira, 1 de julho de 2009

...do porto, do rio e de Teerã - por Eliza

Cecilia,

Sua carta chegou e me tomou de solavanco em pleno domingo de inquietação. Ainda não tinha metabolizado as imagens de Neda Soltan, mártir de todo horror iraniano. E me encontrei várias vezes, nesses últimos dias, com o pensamento tomado pelas palavras de Paulo Coelho ao médico que aparecia naquelas imagens tentando, em vão, socorrer Neda, Harash Hejazi, amigo do escritor e também iraniano: Só a visibilidade pode protegê-lo – eram as palavras que acompanhavam o esforço em auxiliar Harash a deixar seu país. Como se sob a guarda dos olhos do mundo ele pudesse encontrar refúgio e proteção...

Neste último domingo, Hanif Z., outro iraniano, este recém refugiado na Alemanha, prefere o anonimato pelo receio de que, ao revelar-se, selasse com tragédia o destino de seus familiares, que permaneceram em Teerã. Visibilidade e esconderijo – duas faces do mesmo anseio: a proteção.

Ao ler as últimas notícias da capital iraniana no jornal, ainda pela manhã... não pude conter pelas rédeas o pensamento que cavalgava na travessia por este anseio, o da proteção, e pelo preço que pagamos, conscientes ou não, por tal “produto”.

Confiro com as pessoas da minha geração, e que se encontram no ponto oposto do mundo, distantes desta região em franco conflito político, e constato que esta sensação (somente ilusão?) de proteção normalmente vem acompanha de um sentido de solidez e constância, permanência e estabilidade, previsibilidade e conformidade. Há os que encontram isso, por exemplo, na subordinação, visto que ao “cumprirem ordens” se eximem da responsabilidade das decisões e escolhas. Ou pode acontecer justo ao contrário, pois há os que se sentem protegidos justamente na medida em que supõem a si mesmos no controle de todas as coisas.

Querida, não sei nem pretendo julgá-los. Muito ao contrário, como desde o início te disse, tais pensamentos só me trazem desconforto e inquietação. Para te ser realmente sincera, não caibo na conformidade, não sou disciplinada o suficiente nem cordata o bastante para proteger-me em asas alheias. E por outro lado, a castração já faz tempo me pegou de sola, sem dó nem piedade, destroçando toda e qualquer tentativa de onipotência ou ilusão de controle. O que me sobra?

E antes, mas afinal, do que temos tanto que nos proteger? Que medo é esse, que parece universal, e que ao discorrer pelo tempo vem nos impor um paradoxo: de que a preservação da vida consista na economia da mesma?

Tenho sim, eu também, o medo por companhia. Não deveria? Só se não tivesse aprendido nada. Que me acompanhe então – é o convite que lhe faço todos os dias. Às vezes ele me obedece, nem sempre. E nas vezes e ocasiões em que delibera como um antagonista, então me deparo com um ladrão, um perigoso assaltante dos recursos necessários, e em grande parte adquiridos, para lidar com o que só pode acontecer em risco, em incerteza, em angústia no instante: a vida.

Não suporto a idéia de viver somente como adiamento da morte. E, no entanto, quanto temor pelo sofrimento, pelo que há de vir, pelo que não poderei nem evitar, nem escolher. É claro que me sei agente – sujeito entre a causa e a consequência, esse hiato onde o desejo me faz porto de seu rio caudaloso e acidentado. Mas isso que é tanto, ainda assim, é somente parte. Ando em busca do que faça sentido viver, de tal modo, que a morte seja também um merecimento.

Então acho que você tem razão, se é que se pode chamar de razão o que realmente importa: o encontro com o outro. Encontro de tal forma verdadeiro, que nele cada um de nós se torna, no outro, um imortal.

Fico com as suas provocações e a espera de mais. Anseio deixar com você também o melhor de mim.

Um beijo carinhoso,
Eliza

imagem: pintura de Iman Malec, retirado do blog

http://blog.despertarfeminino.com.br/2008/02/iman-maleki-e-canalleto-gnios-da.html