quarta-feira, 1 de julho de 2009

...do porto, do rio e de Teerã - por Eliza

Cecilia,

Sua carta chegou e me tomou de solavanco em pleno domingo de inquietação. Ainda não tinha metabolizado as imagens de Neda Soltan, mártir de todo horror iraniano. E me encontrei várias vezes, nesses últimos dias, com o pensamento tomado pelas palavras de Paulo Coelho ao médico que aparecia naquelas imagens tentando, em vão, socorrer Neda, Harash Hejazi, amigo do escritor e também iraniano: Só a visibilidade pode protegê-lo – eram as palavras que acompanhavam o esforço em auxiliar Harash a deixar seu país. Como se sob a guarda dos olhos do mundo ele pudesse encontrar refúgio e proteção...

Neste último domingo, Hanif Z., outro iraniano, este recém refugiado na Alemanha, prefere o anonimato pelo receio de que, ao revelar-se, selasse com tragédia o destino de seus familiares, que permaneceram em Teerã. Visibilidade e esconderijo – duas faces do mesmo anseio: a proteção.

Ao ler as últimas notícias da capital iraniana no jornal, ainda pela manhã... não pude conter pelas rédeas o pensamento que cavalgava na travessia por este anseio, o da proteção, e pelo preço que pagamos, conscientes ou não, por tal “produto”.

Confiro com as pessoas da minha geração, e que se encontram no ponto oposto do mundo, distantes desta região em franco conflito político, e constato que esta sensação (somente ilusão?) de proteção normalmente vem acompanha de um sentido de solidez e constância, permanência e estabilidade, previsibilidade e conformidade. Há os que encontram isso, por exemplo, na subordinação, visto que ao “cumprirem ordens” se eximem da responsabilidade das decisões e escolhas. Ou pode acontecer justo ao contrário, pois há os que se sentem protegidos justamente na medida em que supõem a si mesmos no controle de todas as coisas.

Querida, não sei nem pretendo julgá-los. Muito ao contrário, como desde o início te disse, tais pensamentos só me trazem desconforto e inquietação. Para te ser realmente sincera, não caibo na conformidade, não sou disciplinada o suficiente nem cordata o bastante para proteger-me em asas alheias. E por outro lado, a castração já faz tempo me pegou de sola, sem dó nem piedade, destroçando toda e qualquer tentativa de onipotência ou ilusão de controle. O que me sobra?

E antes, mas afinal, do que temos tanto que nos proteger? Que medo é esse, que parece universal, e que ao discorrer pelo tempo vem nos impor um paradoxo: de que a preservação da vida consista na economia da mesma?

Tenho sim, eu também, o medo por companhia. Não deveria? Só se não tivesse aprendido nada. Que me acompanhe então – é o convite que lhe faço todos os dias. Às vezes ele me obedece, nem sempre. E nas vezes e ocasiões em que delibera como um antagonista, então me deparo com um ladrão, um perigoso assaltante dos recursos necessários, e em grande parte adquiridos, para lidar com o que só pode acontecer em risco, em incerteza, em angústia no instante: a vida.

Não suporto a idéia de viver somente como adiamento da morte. E, no entanto, quanto temor pelo sofrimento, pelo que há de vir, pelo que não poderei nem evitar, nem escolher. É claro que me sei agente – sujeito entre a causa e a consequência, esse hiato onde o desejo me faz porto de seu rio caudaloso e acidentado. Mas isso que é tanto, ainda assim, é somente parte. Ando em busca do que faça sentido viver, de tal modo, que a morte seja também um merecimento.

Então acho que você tem razão, se é que se pode chamar de razão o que realmente importa: o encontro com o outro. Encontro de tal forma verdadeiro, que nele cada um de nós se torna, no outro, um imortal.

Fico com as suas provocações e a espera de mais. Anseio deixar com você também o melhor de mim.

Um beijo carinhoso,
Eliza

imagem: pintura de Iman Malec, retirado do blog

http://blog.despertarfeminino.com.br/2008/02/iman-maleki-e-canalleto-gnios-da.html




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