terça-feira, 28 de julho de 2009

Impermanências - por CeciLia

“Precário, provisório, perecível;

Falível, transitório, transitivo;

Efêmero, fugaz e passageiro.

Eis aqui um vivo.

Impuro, imperfeito, impermanente

Incerto, incompleto, inconstante;

Instável, variável, defectivo.

Eis aqui um vivo”

(Vivo, Lenine)


Elizaaaa

Pronto! Cheguei!
Como quem pula com os dois pés juntos do alto do terceiro degrau e sente, por um ínfimo, uma lufada de ar na cara despintada, os cabelos moverem-se levemente e a breve agonia do salto. Pronto. Cheguei a tempo de tentar responder a tua pergunta por esta vez, já que a danada resposta muda veloz feito os dias no calendário.

Muito prazer, eu nasci Cecilia Cassal. Em um campo de pouso de ventosa cidade litorânea do sul deste país. Primeiro não foi a casa, foi o espaço vasto, quando cheguei. O mar, antes de tudo, visto do alto. Depois as dunas grandes de areia branca e então o campo. Porque era noite funda, as lâmpadas deviam estar acesas na cabeceira da pista, a biruta movendo-se lentamente com o vento quente que talvez soprasse do norte, os capins do campo de pouso dobrando-se e brilhando um clarão de lua nova que iluminava também os poucos telhados, as dunas para além do campo e de novo o mar, que os olhos já sabiam correr assim, ligeiros, mesmo antes de pousar. Só depois viria o quarto, a cama encostada na parede, a quentura alagada do corpo da mãe, os ruidos da parteira, suas tesouras e bacias, a tia chegada de longe. Do outro lado da parede, o pai e a irmã aguardavam o evento. Aterrissei assim, vez primeira, na casa onde se amanhecia e adormecia em código morse - o pai radiotelegrafista da Varig -, no quintal cercado por acácias mimosas que ladeavam a igreja sobre cuja torre vigiava um São José de bondosos olhos com o Menino ao colo. E tinham cirros no céu nas tardes cheias de pandorgas e cachorros, moleques, bicicletas, antenas que se dobravam sobre as telhas nas noites de vendaval e o aço das asas coloridas dos pequenos aviões, nos fundos da casa onde nasci. E tinham gentes de línguas diferentes, que vinham e iam e tantas vezes chegaram no escuro, em noites de tempestade. Como pinguins que chegam com as correntes e descansam na praia, só para depois retomarem seu curso.

Assim nasci, Cecilia Cassal, numa noite quente de janeiro, sob o signo da impermanência. Todos os nomes que ganhei depois foram assimilados com a alegria de quem precisa deles e de muitos mais, para circunscrever-se. Já fui Mana, Mintsia, Ciça. Já fui Lia, Ceci, Batatinha. Gosto de pensar que a Cecilia lida com a ciência e a Lia com a poesia. Como fragmentar-me desse jeito pareceu, em alguns momentos, complicar a vida de quem me conhecia dos dois mundos, passei a assinar CeciLia. Sem acento, que acentos agudos são como punhais pendurados sobre as palavras. Integradas, a ciência e a poesia, pero no mucho. Como tu, já assimilei e depois devolvi, não sem muita gratidão, um outro sobrenome. Dia destes li que, depois de uma tarde especialmente boa, é muito difícil voltar para o próprio nome. Daí a gente abdica de todos eles e vira mesmo uma cor: Branca. Hoje parece-me que ser Amor é o melhor dos chamamentos: um vôo para o pertencimento, colo e cuidado.

Pois é, esse é um pedaço da resposta, Eliza querida, que jamais se pretenderá completa e - menos pela necessidade de esconderijos do que pela dificuldade em ordenar as idéias -, virá aos pedaços, uma revelação de cada vez, o mosaico se formando lentamente, que é como a vida nos agrupa as verdades. E muda. Como muda rápido, a vida, Eliza! Que pródiga ela é quando vira os ventos e lá estamos nós, metidas em um outro projeto, apaixonadas por um novo amor, fazendo as malas para uma próxima partida, desdobrando as velas sobre uma bahia ou os lençóis sobre o corpo do amado. Que novos nomes esperarão por adoção quando o calendário virar o ano que vem, a próxima década, o final da viagem? Que outras cores seremos, de que músicas nos comporemos, qual luz nos marcará a cena? Certa vez, em um pequeno Cessna, tive a possibilidade de sobrevoar o deserto de Nazca, Perú. Como aquelas figuras, somente visualizadas quando olhadas bem do alto, hoje penso que assim também será a compreensão destas coisas todas: só quando sobrevoarmos a nossa história teremos a noção dos desenhos formados. Antes não. Pode me dizer onde se compra o bilhete? Precisa-se passaporte?

Um beijo, irmã de tantos e bons nomes. Na próxima vez, quero falar-te sobre um novo livro cuja leitura iniciei neste final de semana, A Fera na Selva, de Henry James. Um daqueles de fazer parar o tempo só para pensarpensarpensarpensar... mas ainda é cedo, que preciso colocar umas idéias sob a boina. Fica bem.

CeciLia
(Imagem: Ricardo Araújo)

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