quinta-feira, 2 de julho de 2009

O medo no paralelo 30 e outras histórias - por CeciLia

“ Não me conformo nem comigo
nem com os outros.
Sou um pouco de mar,
quebrando pelas ruas”
Ângelo Giácomo
É tão contundente, minha querida Eliza, a tua frase “ visibilidade e esconderijo, duas faces do mesmo anseio: a proteção”. Nossa! Poderia dar um belo artigo, uma tese inteira ou uma conversa de dias. Ela evocou tantas coisas em mim que resolvi começar a escrever-te pensando um pouco por aí. Por ser fato conhecido de nem ser preciso ir muito no fundo para encontrar aqui uma campônia que nada sabe sobre os determinantes da política internacional, acabei por pensar em algo que tua afirmação lembrou: quando a gente brinca de lobo mau, é pra disfarçar o medo. Paradoxalmente, nos aproximamos do que nos apavora para ganharmos a falsa sensação da força. Primordial e irresgatável, este medo, ainda quando se mostra imenso, (sabemos ser esta apenas a parte apresentável, o que fica acima da superfície), é sempre e tão somente a parte que extravasou. O medo, o medo mesmo, é muito maior. Aliás, para quebrar um pouco da seriedade de que esta carta começa a se revestir, deixa eu cantar um pedacinho do Belchior: “a vida, realmente, é diferente, quer dizer, a vida é muito pior”.

Agora, como é que as pessoas fazem para esquivar-se? Sei lá. Eu canto (porque o momento existe, e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste, sou poeta, já diria aquela outra Cecilia, de quem eu também teria querido ser irmã). Caminho, lato e stricto sensu. Me atiro em aventuras maiores do que as minhas próprias pernas saberiam. Mergulho e me afogo. Retorno à superfície. Procuro pertencimentos. Perco. Sublimo. Que outra maneira haveria de inconformar-me? Proteger-me? Sim, mas... quais perigos, mesmo, estão lá do lado de fora, que já não estivessem cá dentro?

Me falas sobre a economia da vida como um grande paradoxo para a preservação dela e eu mudo e não mudo de assunto, que a vida é vasta e o tempo tão curto. Hoje revi Clara. E porque Clara sempre tem as idéias tão nas pontas dos dedos, como prontas para alçar vôos até onde quer que estejamos, e por ser Clara tão viva, sempre me impressiona. Quando ela entra, os cabelos em desalinho, a forma que oscila entre a mulher e o moleque, não tem jeito, lembro um pequenino poema de que não sei a autoria: “estranho seu olhar, lembra mar, sendo castanho”. Assim é. Hoje contou-me um novo desencanto. Urgente como quem não quer perder nenhum tempo ou, um pouco pior, não quer pensar demais sobre o que lhe pode doer, foi logo dizendo: “não vai dar certo, não vai dar certo. Cedo demais faltou a fagulha dos olhos.” Não entendi o contexto, mas compreendi a guria. Clara é inflamada e inflamável. Acostumada ao entusiasmo (Deus em si), precisa de adesões rápidas aos seus movimentos na vida. Precisa quase da disponibilidade da fé, precisa da vivacidade que salta de seus olhos, precisa de pequenas e grandes demonstrações, como aquelas que dá ao mundo o tempo todo. A alegria em pessoa, Clara não sabe a placidez dos lagos que esperam o degelo. Ela É o degelo que não se conforma com a imobilidade do inverno longo. Com nenhum inverno. E por conhecê-la há tanto, sei que a vida lhe será difícil e rara. Por longos períodos, gelada. Só não sei como dizer-lhe isso. Por hora, conforto-me em saber que conta comigo, embora eu saiba que nem sempre encontra eco (devo ser dessas pessoas que ela julga um pouco lentas demais, com um brilho já meio gasto e incapazes de acompanhar toda a sua energia). De qualquer forma, escuto-a, quando me procura. Clara não economiza a vida. Muitas vezes diz coisas complicadas à senhora que sou, mas tento entendê-la. “CeciLia, é mais fácil tirar a roupa, do que mostrar os olhos”, e outra “a vergonha está mais perto do beijo do que a indiferença” ela diz. E ri. Clara lida diferente com seu medo. Numa economia às avessas, ela gasta a vida e brinca dizendo não saber se haverá reencarnação, por isso precisa conferir tudo hoje. Ai de mim, também não a julgo.

Das coisas práticas, irmã de bons augúrios, tenho a contar que – depois de algumas noites com horas bem reduzidas de sono e com a ajuda compreensiva de S. -, hoje entreguei o tal projeto, a documentação infindável, o escambau. Agora, por favor, torce os dedinhos, bate na madeira, faz uma oferenda a Iemanjá, dança a dança de Shiva, acende teus incensos. Parafraseando o Lenine: “a vida me chama e eu tenho que ir pra vida”. Com Sartre ou Clotet, com Aristóteles ou Morin, sei lá. Ainda tenho outras etapas, umas coisas difíceis-quase-impossíveis pra quem não teve a formação requerida. Mas eu tenho confiança, ah, uma confiança que é quase soberba. Essa, nem todo o medo do mundo conseguiu abalar.

Beijo de quem dormirá uma noite inteira em dias. Fica bem.

CeciLia
(Imagem: CeciLia Cassal - Varandas de Casapueblo - Punta Ballena - Uruguay)

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