Amar o precipício, solto numa boa
E deixar atrás o velho cais
e na distância ver a olho nu:
Com asa fechada ninguém voa...”
Eliza, minha querida Eliza
Sei que o tempo contado voou, como era previsível e – por ser sempre assim - nem deveria ser descrito aqui. Mas escrevo. Ontem era outubro e agora já se passou mais de um mês, desde que me escreveste. Desculpa-me e é minha testemunha, nessa ausência, um Cronos-deus exigente, que tem por hábito engolir seus filhos e assim me tem consumido. O ruim disso tudo é que nem dessa forma conseguimos ser originais, absolutamente todos sofremos desse devoramento. Algumas translações, umas primaveras mal-iniciadas e eis-me, entre mudanças de endereço e outras inquietações, que embora não sejam suficientes para não sentir tua falta, para não querer saber das viagens, para não perguntar daquelas e daqueles a quem amas, anestesiam algumas percepções, e isso também é verdade, mas não todas. Ando precisando é dos outros sentidos. De Kairós, palavra de impensável sabedoria, o tempo certo das coisas acontecerem. Ah, querida, não é de Saturno e seus grilhões de que sinto a falta necessária a parar e escrever-te e falar da amizade que não se consome e da preocupação e da falta deste vínculo que precisa substrato. Sinto falta é de um abandonar-se às possibilidades, ignorar os minutos contados entre um e outro compromisso num eterno apagar de fogueiras. Sinto falta é do desterritório que há somente nos sonhos e em alguns percursos menos explicáveis aqui.
É sobre isso que quero escrever-te. Outro dia indagaste sobre a necessidade de viajar que me acompanha desde o berço, ao menos assim creio. (Naquele remoto campo de pouso, minhas asas tinham tonalidade metálica e hélices que precisavam ser movidas à mão). No meio dessas agendas desenfreadas onde não permitimos sequer uma brecha ao imprevisível, onde o destino – se ocorrer dele existir – não tem a menor chance de manifestar-se, no meio de uma pauta maluca a que nos submetemos por incompetência e necessidade, fico com vontade de ser fruta na ribanceira.
- Como assim?, - sou capaz de imaginar teu olhar interrogativo, a sobrancelha direita levemente elevada.
Assim: ando preferindo ser fruta que – no beiral da ribanceira – descola-se do galho e se lança na parede úmida que leva ao vale, curiosidade e vertigem. Ando precisando ser poeira de beira de estrada, pássaro resgatado ao ninho, tempestade chegando no horizonte, bicicletas sem freios, pés inchados de terra e pedra e cansaço sem outra preocupação senão a de andar. Ando precisando de chegada imprevista em lugar incerto, de largar-se ao acaso, de permitir o imponderável. Vida previsível, autor incompetente, poderás e poderão pensar, se tiverem se dado ao trabalho de chegar até aqui, nessa missiva.
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Pára. Novo capítulo. Esta parte inicial – com epígrafe e tudo que prefiro manter - estava na minha pasta de rascunhos há uma semana, esperando pelo desfecho, esperando que eu conseguisse terminar para ti uma carta que não fosse auto-referencial-óbvia-redundante. Daí aconteceu. Nesse contexto citado de passagem no trecho anterior, a venda da minha casa e um prazo de sessenta dias para uma alteração mais ou menos grande no apartamento novo me deixavam impaciente com as demoras na definição do projeto, no início da obra, na condução da documentação, coisas que não dependiam de mim. Andava naquele momento em que tudo se arrastava e eu começava a achar o mundo inteiro de uma lerdeza exasperante.
Daí entra a vida e suas rasteiras. Daí surge no caminho da gente um piso recém-lavado e, sem avisos o piso e a vida, a gente desliza dolorosamente para dentro de um gesso que imobiliza a perna, mas não o pensamento. Daí precisa – já que não soube por meios pacíficos – literalmente permanecer estendida no chão, dobrada, rendida, à espera do socorro, que façam por nós as coisas mais óbvias. Daí é necessário pensar cada dimensão de novo. Pensar no osso partido ao meio e nos compromissos abortados. Pensar em que não adianta nada mesmo essa correria louca, esse atropelar-se. Precisa-se da bruteza de um osso partido ao meio para isso, Eliza. Péssima, essa falta de sutileza que necessita da intervenção agressiva e dura da vida! Quando isso acontece, calcula-se coisas que normalmente não passam pela consciência, cada distância a percorrer entre um cômodo e outro da casa, a força que os braços têm para as muletas, a regularidade do piso, pensa-se em como transportar coisas banais como um celular sem poder usar as mãos. É preciso que alguém lave os nossos cabelos e prepare o mate. É preciso que dirijam o nosso carro e guardem a nossa vida.
Mas, para além disso, Eliza, é preciso dar graças por descobrir carinho e disponibilidade imensos em todos por aqui. Tenho agradecido inúmeras vezes a um Deus que nem entendo direito, mas que sei que existe sob alguma forma, por isso não ter acontecido com um paciente ou com um dos meus filhos ou ainda com qualquer dos que amo. A minha ansiedade doeria mais, muito mais, do que qualquer dor física que cessa com um analgésico mais potente. É preciso agradecer pela existência de algumas pessoas em especial, nesse momento. Além de todos, S. e V. têm sido incansáveis.
Agora releio o trecho inicial. Nem comento o último parágrafo, não consigo pensar na força da coisa que se pede e é atendida. Ou, como diria o poeta, "É impressionante a força que as coisas parecem ter, quando precisam acontecer". De quem é isso? Não lembro agora. Preparo-me para a cirurgia, às dezesseis. Sei que daqui a quatro semanas estarei pronta em ossos. Depois vem a hora de trabalhar os músculos, despertar os movimentos. Espero que 2010 me encontre menos rígida. Assim, e só desse jeito, terá valido a dor e a impotência. Sigo relendo e me dou conta de coisa pior, Eliza. Continua auto-centrada esta carta e me consolo buscando um trecho do excelente romance de Philippe Besson (Na ausência dos homens, Rocco), onde o protagonista se pergunta: “Contou-se algum dia outra coisa que não fosse a própria história?”
Um beijo, querida. Me conta, tu também, as tuas histórias?
Que Deus as acompanhe,
CeciLia